SBMFC: Quais foram os principais desafios durante a sua gestão como presidente da SBMFC?
Daniel Knupp: Foi uma gestão bastante difícil. Antes de assumir tinha consciência de que seria a gestão mais difícil na história recente da SBMFC. Toda a conjuntura política do país já deixava isso bastante claro. Seria preciso, com o de fato foi, lidar com grandes pressões externas e internas. Mas isso também era uma motivação para a gestão. Era preciso manter a SBMFC ativa, produzindo, coerente com seu estatuto e com sua história. Infelizmente, alguns associados não souberam, a meu ver, fazer uma leitura mais clara da situação. De modo que, ao invés de buscar o diálogo, a escuta e o entendimento, atitude que a diretoria sempre demonstrou, optaram por uma atitude violenta, ofensiva e pouco construtiva na relação com a diretoria. Felizmente, nós, como MFCs que somos, soubemos nos manter abertos ao diálogo, respeitando nossas histórias na MFC, e não deixamos de trabalhar para a SBMFC em função disso.
SBMFC: E as conquistas?
Daniel Knupp: Penso que a realização do 15 CBMFC foi uma importante conquista. Tivemos ainda a conquista de podermos sediar pela primeira vez um Congresso Iberoamericano de Medicina de Família e Comunidade, que será realizado no ano que vem em Vitória/ES. No campo das parcerias, lançamos um novo curso com foco na educação continuada em parceria com a Manole Educação e regulamentamos a oferta de cursos de extensão chancelados pela SBMFC. Além de outras parcerias desenvolvidas mais recentemente. Avançamos muito também nas questões administrativas da SBMFC, como na finalização e registro do novo estatuto e na revisão de contratos e em processos com fornecedores de eventos antigos. A RBMFC se modernizou e ficou mais dinâmica, tem hoje uma produção significativamente maior do que em anos anteriores e caminha consistentemente na direção de indexações importantes.
SBMFC: Como foi representar todos os médicos de família e comunidade do país em diversos espaços?
Daniel Knupp: É muito gratificante observar a importância e a força que a SBMFC, institucionalmente, ganhou no país nos últimos anos. A sociedade tem mais voz e destaque entre as entidades médicas, frente ao Ministério da Saúde, ao CONASS e ao CONASEMS. Isso traz em si a exigência de manter esse reconhecimento, que tem muito a ver com o respeito pelos princípios da nossa especialidade e da própria SBMFC. E também impõe uma agenda consideravelmente apertada, talvez o principal desafio nesse aspecto. De toda forma, foi importante poder levar a esses espaços uma visão sólida e clara do papel e relevância da MFC no país nesse momento e poder apresentar a SBMFC de forma autônoma, com sua própria identidade. Tudo isso fruto de seu histórico recente.
SBMFC: Foram três gestões seguidas (como secretário-geral e vice-presidente e a última como presidente). Essa continuidade trouxe vantagens para a entidade?
Daniel Knupp: Penso que sim, na medida em que alguns caminhos que temos que percorrer para o crescimento da MFC são bastante longos. De modo que poder dar sequência em alguns projetos e linhas de atuação da diretoria é fundamental para conseguirmos avançar nesses caminhos. Além disso, compreender melhor a SBMFC em seus aspectos organizacionais, políticos e em sua dinâmica de trabalho é fundamental hoje em dia. A continuidade permite que se alcance a expertise necessária nesses aspectos, de modo a possibilitar que a diretoria da SBMFC avance onde é mais necessário.
SBMFC: De 2014 para cá, quais progressos da especialidade pôde acompanhar?
Daniel Knupp: A MFC no Brasil cresceu e se fortaleceu muito nos últimos anos. E a SBMFC teve um papel fundamental nisso. Trazer diferentes referenciais, organizar mais espaços de debate e produzir conteúdos alinhados aos princípios da especialidade são elementos que foram essenciais nesse processo. Os desdobramentos disso podem ser vistos tanto no cenário nacional como na inserção da SBMFC globalmente. Podemos citar alguns desses desdobramentos, como o currículo baseado em competências, que hoje é adotado como uma referência para além do campo da residência médica, seu foco original e principal; como a realização do Congresso Mundial da WONCA no Rio de Janeiro em 2016, que consolidou o papel de destaque que a SBMFC tem hoje no mundo; a penetração da MFC no campo das pós-graduações lato sensu, fruto de parcerias institucionais da SBMFC e, em particular, da produção dos Casos Complexos, que foram a base de muitas boas ofertas formativas da UnaSUS; o crescimento da residência em MFC, com grande participação da SBMFC defendendo o espaço e os princípios da especialidade junto à CNRM e na formação de preceptores com ofertas como o Euract; Finalmente, temos a MFC ganhando um importante espaço na mídia, fruto do trabalho das diretorias de comunicação da SBMFC nas últimas gestões.
SBMFC: Qual o momento mais marcante durante essa trajetória?
Daniel Knupp: Para mim a realização do 15 CBMFC foi um momento que marcou muito. Os CBMFCs sempre são momentos especiais para a MFC. E Cuiabá, por várias razões que detalho mais adiante, foi particularmente importante para mim. Outro momento importante foi ter conseguido trazer o próximo Congresso Iberoamericano de MFC para o Brasil. Apesar da importância do nosso país na região, será a primeira vez que se realizará um Iberoamericano por aqui. E certamente também tem sido muito marcante toda a vivência da gestão da SBMFC durante a pandemia. Sem dúvida algo histórico para nós. Penso que a diretoria, com colaboração dos GTs e GIEs, tem se superado a cada dia nesse contexto que exige cada vez mais de nós no campo pessoal, no campo familiar e no campo profissional.
SBMFC: Além da representatividade nacional, foram diversas participações em reuniões e eventos internacionais. Como foi liderar a MFC nessas ocasiões, incluindo na WONCA?
Daniel Knupp: A SBMFC tem hoje um papel de protagonismo na MFC mundialmente. Isso é fruto do trabalho realizado nas últimas gestões. Felizmente pudemos dar sequência a esse trabalho na atual gestão. A MFC no mundo ainda é muito centrada nos países europeus e na América do Norte, particularmente nos países anglo saxões. A WONCA, do ponto de vista organizacional, acaba seguindo esse padrão e privilegiando os países do eixo anglo saxônico. Mudar esse cenário tem sido um objetivo da SBMFC nos últimos anos. De forma que o protagonismo que tem a SBMFC é importante para chamar atenção para a MFC na nossa região da WONCA, a região Iberoamericana. Mas é importante também para outras regiões da WONCA, em particular a África, a região do Leste do Mediterrâneo, e a região do Sul da Ásia. A MFC nessas regiões tem ainda menos força do que a MFC no Brasil atualmente. Em sua maioria, são países com sistemas de saúde mais frágeis, fragmentados e hospitalocêntricos, onde a APS tem pouco destaque. Mas, ao nos envolvermos com a MFC globalmente, vemos que a especialidade necessita da riqueza e pluralidade que encontramos nessas regiões. De forma que liderar a MFC nesses espaços é certamente um privilégio e uma grande responsabilidade.
SBMFC: Entre as atividades, foram realizados eventos, entre eles, o CBMFC 2019, em Cuiabá. A diretoria, principalmente o presidente, tem papel fundamental na organização. Compartilhe não só a sua experiência, mas também a importância dos MFCs, residentes e estudantes participarem desses eventos.
Daniel Knupp: Fiquei muito satisfeito de conseguir concretizar o 15 CBMFC. E foi muito gratificante que tenha sido um evento com a alma da MFC. A diretoria e a comissão organizadora conseguiram entregar um evento com um conteúdo muito robusto, plural e inclusivo. Foi um evento que aproximou as pessoas e deu voz a quem quisesse se manifestar. Mesmo com a distância e o elevado custo de passagens aéreas, tivemos um número de participantes que superou nossas expectativas iniciais. Ficamos em patamar semelhante ao de edições anteriores do CBMFC. Foi uma grata surpresa, que sem dúvida está ligada à mensagem que se buscou passar no evento e à maneira como foi construído.
Mas não foi uma tarefa fácil. Quando assumimos a gestão já tínhamos um atraso no cronograma, particularmente no desenvolvimento da programação científica. O trabalho da diretoria, com a participação de comissão local, foi fundamental para que o congresso pudesse acontecer com a qualidade que teve. Foram muitas noites de trabalho árduo com a grade do evento, buscando contemplar da melhor forma possível tudo o que recebemos de propostas de atividades dos sócios e dos GTs. Além disso, foi o congresso que menos contou com receita de patrocínios nos últimos anos. Sabíamos que muitos apoiadores costumeiros dos nossos eventos não conseguiriam apoiar dessa vez por conta da situação econômica, mas não esperávamos que tivéssemos tão poucos apoiadores. Felizmente, com uma receita majoritariamente baseada nas inscrições, conseguimos fazer o congresso sem prejuízo à SBMFC.
SBMFC: Em 2020, vivemos um momento histórico com a pandemia da Covid-19. Na sua visão, como o vírus mudou a prática clínica e a atuação na Medicina de Família e Comunidade.
Daniel Knupp: É um momento que não poderíamos sequer imaginar. E ainda não podemos prever com clareza o impacto que esse terá para a MFC, para a APS e mesmo para os sistemas de saúde em geral. Podemos afirmar que certamente haverá mudanças no papel da MFC. A começar pelo entendimento da importância do olhar para o coletivo e o peso das questões socioeconômicas na saúde das pessoas. Mas também, olhando para dentro dos serviços de APS, vê-se que a incorporação de novas tecnologias de informação vai se tornar uma realidade ainda mais presente. Isso vai exigir uma considerável adaptação, tanto dos serviços de APS como da prática clínica em MFC. Alguns atributos da APS ganham novas dimensões nessa perspectiva, o que, a meu ver, é uma oportunidade para se dar ainda mais ênfase na importância da APS para os sistemas de saúde.
SBMFC: Na última gestão, os Grupos de Trabalho cresceram e produziram diversos materiais, eventos, guias e cartilhas, reforçando a atuação da Medicina de Família em diversos segmentos e territórios. Como enxerga o papel desses grupos no fortalecimento da MFC?
Daniel Knupp: Os grupos de trabalho e grupos de interesse especial são hoje uma força motriz para a MFC. Uma parte significativa da produção da SBMFC atualmente é ligada aos GTs e GIEs. E isso, a meu ver, é um sinal de que a diretoria caminhou na direção certa nos anos que se passaram. Para além da produção, e tão importante quanto, o trabalho nos GTs e GIEs também é uma oportunidade para que os associados se envolvam mais com a SBMFC, que participem ativamente do seu cotidiano. É a partir desse envolvimento que se desenvolve um compromisso com a sociedade. Só assim é possível fazer da SBMFC uma entidade democrática, plural e diversa. É verdade que esses valores não se alcançam apenas pelos GTs e GIEs, pois são inerentes à SBMFC. Mas o trabalho da diretoria com os grupos coloca estes aspectos em voga de forma muito pujante, e isso é fundamental para a SBMFC e para o crescimento da MFC.
SBMFC: O que espera e deseja para a próxima diretoria?
Daniel Knupp: Há alguns aspectos que desejamos que toda e qualquer gestão da SBMFC seja capaz de desenvolver, independentemente do cenário vigente. Aspectos que estão ligados à própria missão da SBMFC. O desenvolvimento da especialidade no campo científico e no campo profissional é um desses aspectos. No campo científico abrangendo, entre outros, os nossos congressos, o crescimento da RBMFC, o desenvolvimento da pós-graduação stricto sensu em MFC, a produção dos grupos de trabalho e grupos de interesse especial. No campo profissional é preciso que a SBMFC cuide das relações institucionais, seja no âmbito da MFC, seja com outras entidades médicas ou seja com outras entidades da área da saúde, incluindo os gestores do SUS, em particular no âmbito federal. O campo profissional envolve ainda educação permanente, a defesa profissional e a construção da imagem da MFC, ou seja, como as pessoas identificam a especialidade, como apresentamos as ações da SBMFC. A qualificação da formação, tanto na pós-graduação, dentro dos princípios da especialidade, como na graduação, dentro do paradigma no qual se insere a MFC, é outro aspecto importante que deve ser abordado por qualquer gestão da SBMFC. E temos ainda os aspectos organizacionais da própria SBMFC, no fortalecimento e regularização das associações estaduais, no amadurecimento e na participação do conselho diretor e a própria diretoria.
Tenho convicção de que esses aspectos certamente serão desenvolvidos pela próxima gestão. Mas, para além desses aspectos inerentes à atividade da SBMFC, desejo que a próxima gestão consiga manter a SBMFC como uma sociedade plural, capaz de congregar e dar voz a MFCs com diferentes visões, leituras e matizes. Manter a SBMFC como uma sociedade independente e autônoma, sem conflitos de interesse das mais diferentes ordens, e como uma sociedade forte, em crescimento, que seja capaz de se integrar com outros atores importantes para o desenvolvimento da MFC e do SUS, de forma a não permitir que a SBMFC se apequene em um gueto.
Sobre o médico de família e comunidade Daniel Knupp Augusto:
SBMFC: Passados anos da sua formação, ainda se sente motivado na especialidade?
Daniel Knupp: Certamente! E a possibilidade de poder me dedicar mais à atividade clínica, agora que se encerra a gestão, me deixa ainda mais motivado. Acho que essa é uma das grandes diferenças da MFC para as outras especialidades. A curva de aprendizado não faz um platô. Sempre há algo novo, algo que se pode incorporar no campo de trabalho. Sempre tem situações diferentes, mesmo com pessoas que já acompanhamos há muitos anos. A própria pandemia, nesse sentido, é um desafio que traz também uma certa motivação. Como a APS vai se reorganizar? O que pode vir a mudar na maneira pela qual as pessoas e as comunidades se relacionam com os serviços de APS? Essas e outras questões mostram que ainda há muita novidades pela frente para a MFC.
SBMFC: Por já ter atuado como preceptor e hoje como diretor acadêmico no PROMEF, vê com entusiasmo o futuro acadêmico da MFC?
Daniel Knupp: Vejo hoje o lado acadêmico da MFC mais forte do que há alguns anos atrás. Há ainda muito a se caminhar para uma maior consolidação da MFC no campo acadêmico, mas é possível observar um florescimento do interesse pela MFC na graduação que não se via até recentemente. Vemos a residência crescendo, não tanto quantitativamente como gostaríamos, mas formando núcleos de primazia na qualidade, que podem ser multiplicados. No campo da pós-graduação, o ProfSaúde também tem sido um importante impulso acadêmico para a MFC. O número de MFCs com pós-graduação stricto sensu segue aumentando. Em particular, naturalmente, o número de mestres. Isso é um importante propulsor para a especialidade no meio acadêmico.
SBMFC: Quais são seus planos para o próximos meses?
Daniel Knupp: Primeiro quero um mês de férias! Brincadeiras à parte, o plano é iniciar o doutorado. É algo que já venho me propondo há algum tempo, mas que achei melhor não fazer nesses últimos anos, para poder me dedicar adequadamente à SBMFC. Voltar a ter mais tempo para a família também é algo muito importante daqui para frente. A rotina de conciliar o trabalho com a presidência da SBMFC realmente compromete tudo aquilo que está fora do campo profissional.
SBMFC: Deseja acrescentar alguma informação não questionada?
Daniel Knupp: Gostaria de deixar um agradecimento especial a todas e todos colegas da diretoria da SBMFC, que foram uma fortaleza durante esses dois anos e sem os quais não teria sido possível caminhar o quanto caminhamos. Cada colega do grupo teve um papel fundamental para a SBMFC durante a gestão. O que tivemos de conquistas nesse período é certamente fruto do trabalho de cada um da diretoria. Também é fundamental agradecer à equipe da secretaria da SBMFC, que faz um trabalho árduo e tão fundamental para SBMFC, mas muitas vezes pouco reconhecido.