Texto número 20 da série sobre 16 dias de ativismo contra a violência relacionada ao gênero, organizada pelo Grupo de Trabalho Mulheres na MFC, com apoio de outros GTs.
Isaura, uma mulher de 67 anos, veio à consulta em busca de nova receita dos remédios para dormir. Seu médico viajou e ela chegou até mim com uma demanda aparentemente simples e pontual.
Aparentemente.
Viúva e morando com seu único filho (“ele mora comigo, na verdade”), vive da pensão do falecido marido, mas quem cuida do dinheiro é o filho. “Ele prefere assim, diz que já estou velha e posso fazer besteira.” O filho se mudou há três anos, quando perdeu o emprego.
Conversando, ela me conta que há dois anos teve depressão, mas ficou boa com o tratamento, e que os remédios pra dormir (benzodiazepínicos, mal indicados), já toma há muitos anos, desde quando era casada. “Tenho problema de nervos”, me diz.
Sem fazer relação com o quadro depressivo, refere que um pouco depois de se mudar pra casa dela, o filho começou a beber e foi ficando agressivo. “Muitos problemas, coitado. Aí ficou nervoso, igual ao pai. Às vezes grita, às vezes quebra uma coisa. Diz que dou muito trabalho.”
A história de Isaura é a história de muitas mulheres.
Numa sociedade em que tanto o gênero feminino quanto a velhice são menosprezados, as idosas estão duplamente vulneráveis à violência.
Não ser escutada e bem cuidada pelas instituições e profissionais da Saúde é violência institucional.
Ser privada da administração de seus bens e renda é violência patrimonial.
Ser agredida com xingamentos e comentários depreciativos é violência psicológica.
E muitas ainda sofrem negligência (por recusa ou omissão de cuidados), violência física (como beliscões, empurrões, tapas ou abusos que não deixam sinais físicos) e ou sexual (abusos que visam obter excitação, relação sexual ou práticas eróticas através de coação ou ameaças).
As mais afetadas são viúvas ou divorciadas, têm entre 60 e 69 anos, os agressores são majoritariamente os filhos e a subnotificação é uma realidade, devido às mulheres não quererem expor os familiares. As que já sofriam violência do marido estão também mais susceptíveis a sofrer violência na velhice.
Se a função social da mulher é a de “gerar varões”, na velhice, após a menopausa, ela já não tem nenhuma serventia. Apesar de chocante, esse pensamento ainda é muito presente na dimensão simbólico-relacional que vivemos, expressando-se inclusive nas histerectomias mal indicadas e no preconceito com a mulher velha, que poderia, com sua experiência e liberdade dos cuidados familiares, ter muito prazer nessa fase da vida.
Romper com um sistema tão familiar quanto complexo não é tarefa simples nem pontual. Começa com a sensibilidade da(o) profissional, que ao escutar a realidade, pode se tornar uma aliada na jornada dessa mulher em perceber o que vive e como pode ser diferente. Com o apoio, claro, do respaldo legal e das políticas de saúde.
Lia Haikal
ID Lattes: 0594587123590730
@casaluacheia
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