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Mindfulness Aplicado na APS

25 de outubro de 2016

Por Marcelo Demarzo, médico de família e comunidade pelo Programa de Residência Médica do Hospital das Clínicas da FMRP-USP

 

 Encontrada em diversas tradições culturais, religiosas e filosóficas, como budismo(1) e filosofia grega antiga (em especial, nos estoicos)(2), a ideia de mindfulness (atenção plena) tem sido cada vez mais integrada na prática clínica contemporânea de forma secular, principalmente na psicologia e medicina. 

Pode-se considerar mindfulness um termo polissêmico, multifacetado ou “guarda-chuva”, que designa vários aspectos do mesmo fenômeno(3):

 – Mindfulness como estado psicológico: estado mental ou psicológico caracterizado por dois componentes principais(4): a autorregulação da atenção (self-regulation of attention) intencionalmente ao que está acontecendo a cada momento – em outras palavras, dando-se conta do fenômeno enquanto ele acontece. Esse componente aparece quando levamos nossa atenção de forma sustentada a cada atividade ou fenômeno enquanto ele está ocorrendo, em oposição ao estado de desatenção, em que nossa mente devaneia em pensamentos ou imagens sobre eventos passados ou planos futuros, ou ainda em associações de pensamentos, em geral ruminativos, sobre o que está acontecendo no presente, e consequentemente não havendo concentração na experiência direta do fenômeno; além disso, a autorregulação da atenção envolve uma qualidade mental específica, que pode ser caracterizada como uma atitude de abertura e curiosidade frente à experiência (orientation to experience), também chamada de “mente do principiante” ou aceitação (acceptance). Nesse caso, aceitação não significa resignação, mas uma atitude mental de observar o fenômeno como ele é, evitando pré-julgamentos ou ideias pré-concebidas (detached observation)(5). Seria uma atitude oposta ao que habitualmente fazemos quando entramos em contato com a realidade, qualificando-a automaticamente com base em experiências ou padrões de respostas anteriores. Esse pré-julgamento da realidade, por sua vez, pode estar associado a reações do tipo “piloto automático”, gerando viés cognitivo, que pode gerar sofrimento psíquico ou mesmo quadros de ansiedade ou depressão. 

 

– Mindfulness como prática: uma série de exercícios, técnicas ou práticas formais que treinam e cultivam o estado psicológico de mindfulness descrito anteriormente e são, em sua maioria, derivadas de práticas meditativas tradicionais, adaptadas principalmente do zen-budismo (“caminhada com atenção plena”, “atenção plena na respiração”), da ioga (“movimentos com atenção plena”) e da tradição vipassana (“body scan” ou “escaneamento corporal”) (3).

 

– Mindfulness como programa de intervenção: mais recentemente (últimas três décadas), mindfulness tem se referido a programas estruturados de intervenção, profiláticos ou terapêuticos, designados genericamente de “intervenções baseadas em mindfulness" (Mindfulness-Based Interventions – MBI). As MBI podem ser vistas como intervenções psicossociais em que as práticas de atenção plena são ensinadas de maneira estruturada e manualizada, com conteúdo bem definido, tendo como objetivo final o treinamento do estado de mindfulness ou awareness, e por fim o aprimoramento do traço de mindfulness. O programa original é o MBSR (5,6) (Mindfulness-Based Stress Reduction), criado na Universidade de Massachusetts (EUA) por Jon Kabat-Zinn no final da década de 1970, voltado a pacientes com condições clínicas crônicas. Em geral, os programas são desenvolvidos em grupo, ao longo de oito semanas, com uma sessão presencial por semana de aproximadamente duas horas, quando são ensinados e praticados os exercícios de mindfulness, associados a psicoeducação para o manejo adequado do “estresse” cotidiano. A partir do MBSR, vários outros programas foram desenvolvidos, sempre baseados nas práticas de mindfulness, mas orientados a públicos-alvo específicos, como o programa MBCT (Mindfulness-Based Cognitive Therapy), voltado a pacientes com depressão maior (unipolar) com alto risco de recaída (mais de três recaídas ou recorrências anteriores)(7); o MBRP (Mindfulness-Based Relapse Prevention), para prevenção de recaídas em casos de dependência química(8); e o MB-EAT (Mindfulness-Based Eating Awareness Training), para manejo do sobrepeso, obesidade e compulsão alimentar(9). Para além da área da saúde, os programas de mindfulness têm sido aplicados na sociedade em geral, como na educação(10) e nas organizações (11), incluindo programas voltados a escolas de ensino fundamental, ao mundo corporativo e a atletas de alto desempenho(12, 13). 

 

Aplicações de mindfulness na APS

No campo da saúde em geral, particularmente das práticas integrativas e complementares (PIC) como podem ser enquadradas as MBI, o acesso à melhor evidência científica para a tomada de decisão terapêutica ou profilática, visando à melhora do cuidado às pessoas e comunidades, é fundamental. Atualmente, já existem diversas revisões sistemáticas e meta-análises verificando a eficácia das MBI em uma amplitude de condições clínicas (em especial, as crônicas)(14) e não clínicas (manejo do estresse, melhora da qualidade de vida)(15), e a síntese que se pode fazer é que as MBI podem ser consideradas opções terapêuticas (e não mais “medicina alternativa”) em algumas condições mais bem estudadas, em especial naquelas com associação com sintomas de estresse psicológico, ansiedade e depressão. Apoiado nesse corpo de evidência científica, desde 2004 o sistema nacional de saúde inglês (NHS – National Health Service) tem apoiado o uso de mindfulness, em especial do programa MBCT, no tratamento de recorrência em adultos com diagnóstico de depressão maior (unipolar) . 

 

Acesso

Um aspecto-chave na aplicação clínica das MBI na APS, e em qualquer outro ponto de atenção num sistema de saúde, é o acesso a tais intervenções, e para isso as experiências internacionais, em especial do Reino Unido, indicam a necessidade de plano estratégico para a efetiva implementação das MBI nos serviços de saúde (para mais detalhes, sugere-se a leitura do artigo de revisão de Demarzo e colegas (2015) sobre o tema(16)). 

 

Promoção da saúde e políticas públicas

 

Para além de suas aplicações preventivas ou terapêuticas na APS, pode-se dizer que os programas de mindfulness têm impacto em todos os aspectos da promoção da saúde, compreendida em seu sentido mais amplo (no contexto da “intersetorialidade”) e moderno (como “qualidade de vida e bem-estar na sociedade”)(3). Os programas de mindfulness têm como princípio o desenvolvimento de autonomia, autoeficácia e empoderamento das pessoas por meio do treinamento da atenção plena, aspectos considerados fundamentais no conceito moderno de promoção da saúde. Além disso, mindfulness pode ter um efeito de empoderamento comunitário, ao melhorar as relações entre as pessoas em qualquer âmbito da sociedade, por meio do cultivo de uma atitude mais compassiva e empática(3,17). Por exemplo, no Reino Unido, além de mindfulness ser uma das ferramentas terapêuticas baseadas em evidência no NHS , conforme já mencionado, os próprios parlamentares têm sido treinados no conceito, com o intuito de catalisar sua inserção futura na sociedade como um todo, a partir de uma política pública que propõe a implementação de mindfulness nas áreas da educação, organizações e sistema de justiça, além da área da saúde . Por suas características, a APS, em especial de orientação comunitária, como o modelo predominante brasileiro da Estratégia Saúde da Família (ESF), somada às políticas já implantadas como o Programa Saúde na Escola (PSE) e a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), pode ser um importante modo de catalisação da implementação de mindfulness como política pública também no Brasil. 

 

 Aplicação em estudantes e profissionais de saúde

 

Estudos em estudantes e profissionais da área da saúde, incluindo equipes de APS, têm evidenciado que a prática ou participação em um programa de mindfulness pode melhorar o manejo de situações estressantes no dia a dia de trabalho, com menor risco de desenvolvimento de burnout e melhora de indicadores de qualidade de vida associada ao trabalho(18–22). Benefícios para a relação profissional-usuário têm sido demonstrados, aprimorando a abordagem centrada na pessoa, com melhora dos níveis de empatia e, inclusive, melhora dos resultados e do prognóstico dos pacientes atendidos por esses profissionais(23). Com base nesses estudos, muitas instituições de ensino têm introduzido as práticas meditativas dentro dos currículos de graduação e pós-graduação na área da saúde, buscando tais benefícios desde a formação dos profissionais. 

Como praticar e aplicar mindfulness?

Como é uma prática de mindfulness?

Cuidados e orientações antes de iniciar

Alguns cuidados e orientações são importantes para quem pretende iniciar e manter uma prática de mindfulness(24):

 

De preferência, em especial no início do treinamento, encontrar um lugar mais silencioso e com pouca distração. Plugues de proteção sonora para os ouvidos podem ser utilizados em locais mais barulhentos;

Reservar tempo e espaço na agenda diária para a prática. Independentemente do tempo que se pretende praticar naquela sessão (5, 10, 15, 30 minutos etc.), o uso de um alarme (ou aplicativos de celular com foco em mindfulness) que marque o fim da sessão é recomendado para que o praticante evite ficar preocupado em olhar o relógio durante a prática;

Usar roupas confortáveis e adequadas para a temperatura do local. Lembrar que a temperatura corporal pode cair levemente durante a prática, assim o uso de um cobertor leve pode prevenir eventuais desconfortos;

Sentar ou deitar em posição que permita pouco ou nenhum desconforto durante o tempo de prática. O uso de colchonetes, travesseiros ou almofadas é recomendado. O pescoço deve estar em posição neutra e confortável. A coluna deve estar ereta quando sentado, com ombros alinhados e mãos apoiadas nas pernas, para evitar desconforto na cintura escapular;

Os olhos podem estar fechados ou abertos. Quando abertos, devem ficar relaxados, sem focagem específica;

Evitar refeições copiosas ou jejum muito prolongado antes das práticas;

Praticar por períodos menores no começo (5-10 minutos), aumentando progressivamente o tempo da prática, conforme possibilidades e necessidades de cada um;

Ser persistente e regular, pois melhores benefícios e progressos virão com a prática diária e regular;

Praticar em grupos e/ou ter um instrutor qualificado pode ajudar na adesão e manutenção das práticas. O uso de práticas audioguiadas pode ajudar também;

Ter em mente que algum desconforto, nas costas ou nas pernas, por exemplo, pode ocorrer em iniciantes. Tentar achar uma posição mais confortável pode ajudar nesses casos;

Ter em mente que as práticas de mindfulness ou outras técnicas meditativas podem eventualmente trazer à tona estressores ou traumas preexistentes e/ou reprimidos, por isso o apoio de um instrutor qualificado e/ou de um profissional da saúde é importante nessas situações, em especial para pacientes.

Apesar dos inúmeros benefícios e da simplicidade das técnicas de mindfulness, tanto profissionais quanto pacientes devem ter consciência de que estas não substituem os tratamentos médicos e de outros profissionais da saúde.

Prática de mindfulness com foco na respiração(24)

A seguir, será apresentada uma técnica meditativa do tipo mindfulness (prática formal), que utiliza como âncora a própria respiração, uma das mais utilizadas para iniciar o treinamento. É segura e de simples aplicação para a população geral e pacientes. Tendo como base os cuidados e orientações explicitados anteriormente, deve-se seguir os passos abaixo(24):

1. Adotando uma posição confortável, sentado ou deitado, deixar o corpo se estabilizar na posição. Pode-se fazer uma ou duas respirações mais profundas para trazer a atenção para o corpo, como também começar lentamente a observar as sensações no corpo naquele momento (contato com o chão ou cadeira, temperatura da pele, possíveis desconfortos etc.);

2. Gradualmente, começar a trazer a atenção e a observação para os movimentos do corpo durante a respiração, como os movimentos do tórax e do abdômen na inspiração e expiração do ar, ou ainda a sensação do ar entrando e saindo pelas narinas durante a respiração. É importante seguir o fluxo natural da respiração, sem tentar alterá-lo, apenas observando-o;

3. Mantenha então a observação da respiração como âncora da atenção e da mente momento a momento, a cada respiração;

4. Eventualmente, se alguma distração, pensamento, imagem, sensação ou preocupação vier à tona, gentil e simplesmente apenas perceba e deixe passar, sem se prender ou julgar, voltando novamente a observação para a respiração;

5. Antes de encerrar a sessão, traga novamente a atenção e a observação para as sensações em todo o corpo naquele momento, e lenta e gradualmente termine a prática.

 

Conclusão

A aplicação de mindfulness no campo da saúde e na APS tem grande potencial para melhorar o estado de saúde e o bem-estar da população em geral e de pacientes, particularmente os portadores de condições crônicas associadas a sintomas de ansiedade e depressão. Os médicos de família e comunidade e as equipes de saúde da família deveriam incorporar mindfulness em seus planos e projetos terapêuticos, constituindo-se efetivamente em importantes agentes desencadeadores dessa terapia complementar efetiva e promotora de saúde no Brasil.

Marcelo Demarzo – Médico pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo (FMRP-USP); especialista em medicina de família e comunidade pelo Programa de Residência Médica do Hospital das Clínicas da FMRP-USP; doutor em ciências médicas pela FMRP-USP; docente do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp); pesquisador do Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo; instrutor certificado de mindfulness com treinamentos na Inglaterra (Instituto Breathworks) e nos EUA (Center for Mindfulness in Medicine, Health Care, and Society – University of Massachusetts), com Jon Kabat-Zinn e Saki Santorelli; coordenador do Mente Aberta – Centro Brasileiro de Mindfulness e Promoção da Saúde, Unifesp (www.mindfulnessbrasil.com) e responsável pela especialização em mindfulness da EPM-Unifesp. 

 

[1]Este texto é um resumo expandido do capítulo Mindfulness Aplicado à Saúde, a ser publicado pelo Promef em 2016-2017.

 

PARA SABER MAIS

ALGUNS SITES ESPECIALIZADOS EM MINDFULNESS E SAÚDE

www.mindfulnessbrasil.com (Mente Aberta – Centro Brasileiro de Mindfulness e Promoção da Saúde – Unifesp) 

www.mbrpbrasil.com.br (Centro Brasileiro de Pesquisa e Formação em MBRP – Unifesp) 

www.goamra.org (American Mindfulness Research Association, Estados Unidos – informações em inglês)

www.umassmed.edu/cfm (Centro de Meditação Mindfulness na Medicina, Universidade de Massachusetts, Estados Unidos – informações em inglês)

www.breathworks-mindfulness.org.uk (Instituto Breathworks, Inglaterra, Reino Unido – informações em inglês)

 

Referências bibliográficas

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3. Demarzo M. Mindfulness e Promoção da Saúde. RESC [Internet]. 2015;2(3):e82. Available from: https://saudenacomunidade.wordpress.com/2015/03/03/resc2015-e82/

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