Texto número 4 da série sobre 16 dias de ativismo contra a violência relacionada ao gênero, organizada pelo Grupo de Trabalho Mulheres na MFC, com apoio de outros GTs.
A sexualidade é um dispositivo importante de controle social tal como afirma Michel Foucault1 e, para mulheres, atua como importante mecanismo de subordinação2. A sexualidade feminina é socialmente moldada para se encaixar aos interesses de um sistema patriarcal e capitalistas que se pauta na família nuclear heterossexual monogâmica como base organizacional da sociedade3. Tal sistema produz e alimenta o discurso da cisheteronormatividade como forma de controle e opressão4.
Ser lésbica implica estar submetida a duas matrizes de opressão social: ser mulher e lidar com o sexismo vigente em uma sociedade que não a respeita como sujeito de direitos; e não corresponder ao roteiro sexual estabelecido como norma: a hetossexualidade compulsória. Lésbicas e outras mulheres que se relacionam com mulheres têm sua subjetividade e sociabilidade atravessadas pelo estresse de minorias sexuais e de gênero, imposto à população que não se adapta a cisheteronormatividade5. Tal estresse é composto por quatro elementos, segundo Meyer (2003): a lgbtfobia internalizada, o estigma social, o contínuo medo de rejeição e o dilema contínuo entre revelar ou não a identidade sexual e de gênero. Enquanto mulheres em uma sociedade patriarcal, lésbicas têm a sexualidade duplamente negada por uma sociedade que é incapaz de reconhecer direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e pelo desacordo com a heteronorma que sustenta a divisão sexual do trabalho e, portanto o sistema capitalista de subordinação6,7.
A homossexualidade feminina é ativamente silenciada em todos os espaços7, sofrendo inclusive margnalização dentro do moviento feminista8,9, e do próprio movimento LGBT9, que tem a ordem da sigla alterada especificamente com o intuito de chamar atenção para a invisibilidade da narrativa e da agenda de lésbicas. Para visibilizar as especificidades de violências relacionadas com a homossexualidade feminina, criou-se o termo LESBOFOBIA e, em 2018, os grupos Núcleo de Inclusão social (NIS) e Nós: dissidências feministas lançaram o Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil, com dados de mortes por lesbofobia no país entre os anos de 2014 e 2017.10
As lesbofobias envolvem situações de violência intra familiar, tanto a partir da família de origem com responsáveis que não acolhem a identidade sexual de suas filhas e, por vezes expulsam-as de casa, como também em relações afetivo/romântico/sexuais, que podem configurar-se como abusivas11. Há um mito de que relações homossexuais não são abusivas à medida que envolvem duas pessoas do mesmo gênero. Tal mito contribui para que mulheres lésbicas vítimas de violência doméstica permaneçam silenciadas. A fragilidade da rede de apoio, em decorrência do estigma social e preconceito, tornam mulheres lésbicas mais vulnerabilizadas em relacionamentos não horizontais. Para acolher mulheres nessa situação é preciso considerar o contexto e as possibilidades de agenciamento desta mulher e do casal.
Uma das formas mais agressivas de lesbofobia consiste no estupro corretivo, prática por meio da qual mulheres lésbicas são forçadas a ter relaçõessexuais com penetração anal como estratégia para torna-las heterossexuais. Além de uma violência sexual, o estupro corretivo infere a negação da lesbianidade como possibilidade de ser no mundo, associando- a ao estigma de algo patologico que pode ser curado12.
A lesbofobia ocorre em decorrência da cisheteronormatividade presente nas instituições sociais como a escola, o mercado de trabalho e a saúde. No âmbito da saúde, a lesbofobia se apresenta por via da reprodução da cisheteronorma, que impede profissionais de saúde de perguntar sobre a sexualidade das mulheres, pelo não reconhecimento das relações sexuais entre lésbicas como tal e portanto com falta de informações qualificadas sobre sexo mais seguro, métodosde barreira eficazes e possibilidade de transmissão de ist’s e pela não oferta de programa de rastreamento de câncer de colo uterino e de mama7,13,14. O direito ao planejamento reprodutivo de casais de lésbicas também é um tema negligenciado por profissionais de saúde. É importante ressaltar ainda que, entre casais de mulheres cis e trans que não realizaram cirurgia de afirmação de genero e utilizam o pênis para relações sexuais, a discussão de planejamento reprodutivo é importante para avaliar conjuntamente a necessidade ou não de prescrição de contraceptivos.
As relações sociais de lésbicas brasileiras não são atravessadas exclusivamente pelas matrizes de opressão de gênero e sexualidade. Classe, raça e identidade de gênero são formas de opressão que vão interagir e atuar diretamente no processo de saúde e adoecimento e, portanto, precisam ser percebidas e acolhidas, com vistas a um cuidado integral com equidade9,15.
Por Rita Helena Borret e Renata Carneiro Vieira
Referências