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Entrevista Adib Jatene

1 de outubro de 2010


Um ícone da medicina brasileira

Professor, médico, especialista em cardiologia, um dos fundadores do Instituto do Coração, ex-secretário de saúde e ex-ministro da Saúde em duas oportunidades. Esse já seria um currículo absolutamente extenso e imponente para qualquer profissional, mas quando se fala de Adib Domingos Jatene, essas são apenas algumas das experiências vividas ao longo de mais de 50 anos de profissão.


Nascido na cidade de Xapuri (AC), Jatene completou 80 anos de vida em 2009, com aproximadamente 300 trabalhos científicos publicados em revistas indexadas, sendo membro de 30 sociedades científicas, e tendo recebido mais de uma centena de homenagens, entre as quais a Ordem Nacional do Mérito Científico. Além disso, ficou entre as personalidades mais votadas em concurso realizado pela ‘Revista Isto É’ para eleger o “Brasileiro do Século XX”.


Foi durante sua gestão no Ministério da Saúde que o Programa Saúde da Família (PSF) tomou forma e ganhou importância no contexto brasileiro. Entusiasta do programa, Jatene concedeu entrevista falando sobre o início do PSF, sua participação, necessidades e o atual cenário que envolve o Sistema de Saúde no País.
Confira.

 

Revista Saúde da Família – Como teve início o seu contato com o Programa Saúde da Família?
Dr. Adib Jatene – Esse contato se iniciou de maneira preliminar quando fui Secretário de Saúde do estado de São Paulo. Fizemos no Vale do Ribeira (região do interior de SP) um programa de agentes de saúde. Posteriormente começaram a surgir outros programas no Ceará e Minas Gerais. Portanto já existiam algumas tentativas nessa área. Já o Ministério da Saúde começou a estruturar um Programa de agentes comunitários de saúde no início dos anos 1990. Havia naquele momento um embrião do programa que se implantou inicialmente na Paraíba e outras localidades do Nordeste do País.
Como era difícil levar médicos para determinadas regiões, a ideia era que conseguíssemos identificar uma pessoa vivendo numa comunidade de 100/200 famílias, dependendo da concentração, e essa pessoa fosse treinada para cadastrar a população, verificar idade, sexo, condições de habitação, doenças preexistentes, quem era hipertenso, diabético, quem estava grávida e fazendo pré-natal, se as crianças estavam participando do programa de vacinação, enfim, fazer um cadastramento dessa população, e depois acompanhar esta população visitando cada casa pelo menos uma vez ao mês. Este programa teve uma atuação muito importante na época da epidemia de Cólera no País.

De que maneira esse Programa passou a ter maior ênfase no Ministério?
Jatene – Em 1995, eu levei a então primeira-dama Ruth Cardoso para inauguração de um posto de saúde em Camarajibe, na grande Recife (PE). Ela ficou muito entusiasmada com o programa e influenciou o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso que convocou até uma reunião com agentes comunitários de saúde. Isso trouxe uma ênfase muito grande ao Programa de Saúde da Família. A essa altura, estava em processo o que nós chamamos de “descentralização da atenção à saúde em nível municipal”. Ampliamos o programa de agentes comunitários. A cada cinco ou seis equipes, colocávamos num posto de saúde um médico, um enfermeiro e um auxiliar de enfermagem, formando assim a equipe de saúde da família. Com isso restabelecemos um vínculo e a responsabilidade pelo atendimento. Hoje há mais de 4 mil municípios com programa de agentes comunitários de saúde e Programa de Saúde da Família.

Quais foram as dificuldades de implementação do programa?
Jatene – O grande problema é que muita gente achava que esse não era programa para áreas metropolitanas. Porque nessas áreas já tinham os grandes hospitais e todos os recursos e que esse tipo de programa só funcionaria em regiões pobres. Entretanto, sempre defendi – desde o período como Secretario de Saúde de São Paulo – a ideia que este era um programa para as áreas metropolitanas, até mais do que nas zonas rurais e no interior.

Como o senhor vê essa humanização no atendimento?
Jatene – Nesse sentido o programa fez realmente com que essa humanização evoluísse muito. A população é atendida em conjunto, as consultas são feitas em conjunto. O fato de haver uma equipe de saúde da família trouxe muito mais segurança para essas famílias que podem acessá-las pelos seus próprios meios de locomoção: a pé. Uma população só pode dizer que tem assistência se ela pode chegar ao local de atendimento pelos seus próprios meios de locomoção. É nesse sentido que o programa é importante. Se um agente comunitário atende em média 200 famílias, isso representa três ou quatro ruas de uma determinada região onde ele obrigatoriamente passa. Por isso sou contra a ideia de concurso público para agentes comunitários, pois ele não é um funcionário público comum, mas daquela determinada população. Deve haver um envolvimento e a própria comunidade deve participar da sua escolha, porque ele vai entrar nas casas. Isso é fundamental para o programa.

Do jeito que as coisas estão hoje, por meio de concurso público vão ingressar pessoas que tem uma qualificação muito superior a necessidade de um agente comunitário. Vai ter professor, psicólogo, pedagogo…E o que é pior, pessoas que não moram naquela região e não tem o menor envolvimento. Perde-se completamente o sentido.

E a questão do atendimento primário?
Jatene – O atendimento primário é um conceito que está estabelecido mundialmente desde 1978 quando houve a Assembleia geral da Organização Mundial de Saúde em Genebra, Suíça. Definiu-se que ele devia ter prioridade em relação ao atendimento hospitalar. Eu sempre discuti muito esse conceito porque achava que tanto o atendimento hospitalar quanto o primário eram bastante deficientes no País e nós precisávamos incrementar os dois. Na época, criou-se o slogan: “Saúde para todos no ano 2000”. Já estamos em 2010, e ainda muito longe dessa promessa. Digo sempre: slogans são fáceis de serem elaborados e difíceis de serem cumpridos. De qualquer forma, hoje o conceito de atendimento básico, atendimento primário e o que as equipes de saúde realmente fazem é a verdadeira prevenção.

Como o Programa de Saúde da Família é visto atualmente?
Jatene –
Hoje o Programa de Saúde da Família está funcionando bem, mas ainda falta muito a ser feito nessa questão de completar e montar equipes de especialistas para atender certas situações. Ter leitos para internar e, inclusive, para cuidados paliativos. Nessa parcela da população falar em ‘home care’ é uma tremenda bobagem. Eles não têm condições para isso, então tem que ter leitos para esse tipo de cuidado. Nós estamos caminhando.
De maneira geral, essas regiões onde o PSF está implantado a vacinação é de praticamente 100%, o pré-natal é completo. Ainda existem algumas deficiências em relação ao local para o parto, mas com certeza nós estamos avançando muito nesse processo.

Quais as mudanças do PSF em relação ao que era no início?
Jatene – O PSF era praticamente uma imposição que o Ministério da Saúde estava apostando naquele momento. Hoje esse Programa é naturalmente uma demanda. Ou seja, as regiões que não contam com esse Programa querem a qualquer custo estabelecer esse trabalho porque é notória a melhoria que ele traz. Nesses anos nós avançamos muito. Uma prova disso é a própria queda na mortalidade infantil. Hoje nós já estamos em um nível abaixo de 20 mortes para cada 1.000 nascimentos. Isso porque as crianças vêm sendo acompanhadas. Está crescendo o aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses. A própria licença maternidade está sendo ampliada. Ou seja, estamos dando assistência à população, principalmente de baixa renda. A grande deficiência que ainda temos são os casos que precisam de atendimento médico hospitalar, exames de laboratório, exames por imagem e isso ainda não conseguimos uma oferta a altura da necessidade, mas estamos caminhando.

Qual é o potencial do programa para o futuro?
Jatene –
O intuito é manter o PSF nos lugares onde ele já funciona. A própria população deve cuidar e se preocupar em preservá-lo. Porque são eles que se beneficiam desse trabalho. Isso nós ainda estamos aprendendo a fazer. Somos um País de cultura autoritária. Sendo assim, quem exerce um governo tem o perfil de ‘mandar’ nos programas. E esse não é um programa de quem exerce o poder, é um programa da população. E é justamente ela que deve cuidar para que ele continue funcionando. Isso exige um amadurecimento organizacional, cultural e estratégico da própria sociedade.

O Programa continua sendo visto como uma alternativa?
Jatene – O programa não pode ser visto como uma alternativa ao sistema de saúde. São programas complementares. Se você tem um Programa de Saúde da Família, em cada equipe você vai acabar encontrando uma série de casos que necessitam de um especialista. Você precisa saber para onde mandar. E desses casos, alguns ainda vão precisar de exames e você precisa de um sistema pra poder realizar esses exames. E é aí que o sistema ainda é falho. Isso porque a tecnologia avançou muito mais rapidamente do que o crescimento dos recursos para cobrir essas deficiências. A tecnologia inevitavelmente encarece muito o atendimento e os recursos não acompanharam.

Como isso pode ser explicado em números?
Jatene – Em 1995, os gastos federais com saúde representavam 22% do orçamento da seguridade. Em 1998, representava 18%. No ano de 2009, esse mesmo número foi 14% do orçamento. Ou seja, os recursos – em valor real – são decrescentes. O que tem sido crescente – e também em valor real – são os recursos para a previdência social e também os recursos para pagamento de juros da dívida que – em conjunto – levam quase metade do orçamento. Isso significa que há uma defasagem financeira muito grande quando se fala em recursos para todo sistema de saúde.

Qual é a proximidade entre as gestões municipal, estadual e federal?
Jatene – O Programa tem que ser feito em função dessa base por que existe a necessidade de uma descentralização municipal. Um grande problema do PSF é a importância de não se politizar o trabalho. Ou seja, não exercer influência política nele. Se cada prefeito puder substituir a cada quatro anos os agentes, perde-se totalmente o sentido. Por isso o sistema tem que ser independente da política e, esse ainda é um problema que se enfrenta por que em muitos lugares você ainda encontra essa situação. Isso compromete a lisura do programa. O PSF não foi feito para alguém se beneficiar dele.

Como o programa se encaixa no contexto social brasileiro?
Jatene – A nossa sociedade é desigual. Tem uma parte que tem acesso a tudo e recurso para cobrir as despesas. Enquanto isso existe grande parcela que não tem esse recurso e depende dos programas públicos. É por isso que tem que haver uma convergência dos que ‘podem’ em benefício dos que não podem. É o que se chama de solidariedade. E eu vejo que isso está acontecendo. Você vê uma série de programas de responsabilidade social por parte das grandes empresas. Muitas organizações estão sendo montadas pra tratar de uma infinidade de assuntos urgentes. A sociedade como um todo, e aqueles que têm mais condições, devem ter responsabilidade e compromisso em ajudar. Isso está acontecendo. Essa participação tem sido crescente e é isso que vai dar um equilíbrio para a sociedade. Depois de muito visitar e conhecer regiões pobres, eu criei uma frase que resume meu pensamento sobre esse assunto: O grande problema do pobre não é ele ser pobre…é que os amigos dele também são pobres. Ou seja, ele não tem quem o ajude. Ele não tem amigo que fala com quem decide. Não tem amigo que marca uma audiência. Por isso, na medida em que o programa de saúde da família se direciona a essa parcela da população, está no caminho certo de atingir os seus objetivos.