*Por Camila Carvalho de Souza Amorim Matos, médica de família e comunidade, membro do Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da SBMFC
O dia 21 de Janeiro foi definido como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa pela Lei nº 11.635 de 2007, como uma forma de homenagem à Iyalorixá (Mãe de Santo) Gilda de Ogum, fundadora do Ilê Axé Abassá de Ogum, terreiro de Candomblé da Nação Ketu, que foi invadido e depredado em 1999 (1). Em 2016, o busto em homenagem a Mãe Gilda, localizado em Salvador, foi depredado e precisou passar por restaurações após os ataques sofridos (2).
Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos do Rio de Janeiro, os casos registrados de intolerância religiosa cresceram 60% quando comparados o primeiro semestre de 2017 ao primeiro semestre de 2018 (3). A nível nacional, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos levantou que os praticantes da Umbanda e do Candomblé foram os que mais registraram casos de intolerância religiosa em 2018 através do Disque 100. Entre 2015 e 2018, foram registrados 1.729 casos de intolerância religiosa no país (4).
Para discutir a interface dessa temática com a saúde e a prática da Medicina de Família e Comunidade, o Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) propôs que médicas e médicos de família enviassem dúvidas acerca do atendimento específico aos adeptos das religiões de matriz africana. Aqui, busca-se explorar um pouco mais desse vasto universo, extrapolando as temáticas abordadas no vídeo (disponível nas redes sociais da SBMFC) e oferecendo subsídios e leituras para a prática profissional.
Sabe-se que a religiosidade e a espiritualidade são faces importantes para a compreensão do que o paciente considera saúde-doença, devendo ser consideradas na abordagem integral do indivíduo quando do atendimento em saúde (5). No caso das religiões de matriz africana, destaca-se que há um vasto desconhecimento dos profissionais de saúde acerca de suas práticas, em parte também gerado pela intolerância religiosa, já que os praticantes dessas religiões precisaram por muito tempo esconder suas práticas e, até hoje, vivenciam situações de racismo religioso –nos serviços de saúde e fora deles (6, 7). A prática das religiões trazidas para o Brasil na diáspora africana foi perseguida durante a maior parte da história do país, sendo taxadas como “feitiçaria”, “curandeirismo”, chegando a ser criminalizadas pelo Estado brasileiro no início da República, sofrendo assim repressão e perseguição policial, o que colaborou para aumentar o desconhecimento sobre essas práticas e o medo de seus praticantes ao expressarem sua fé (6).
Ressalta-se que, dentro do termo “religiões de matriz-africana” há uma grande diversidade de religiões, como o Candomblé, a Umbanda, o Batuque, o Tambor de Mina, dentre outras. Cada uma delas tem seus fundamentos e, consequentemente, suas concepções de saúde e adoecimento. Mas há algo de comum em todas elas: o ingresso na vida religiosa se dá, na grande maioria dos adeptos, graças a problemas de saúde para os quais a “medicina formal” não encontrou respostas. Diversos trabalhos, seja da década de 70, de 90, ou dos anos 2000, mostram que a chegada às religiões de matriz africana é motivada por questões de saúde, física ou mental (8, 9, 10, 11, 12). Segundo Portugal (7), o “não ter nada” ou o “ser desenganado” simboliza o fim do encontro clínico entre paciente e saúde formal, quando uma causa ou uma solução para o seu problema não são encontradas.
Para adentrar na concepção de saúde-doença das religiões de matriz africana, é importante compreender que se trata de outra cosmovisão, ou seja, de outra visão de mundo. As concepções de céu-inferno, bom-ruim e pecado, por exemplo, não existem. Isso quer dizer que os preceitos religiosos são seguidos fielmente porque fazem bem e não porque, caso contrário, o adepto será penalizado.
Tratando da questão da abordagem alimentar, deve-se entender que os resguardos religiosos relacionados à comida não são entendidos como proibições, mas sim como orientações para o equilíbrio do corpo. Na visão do Candomblé –e tratando exclusivamente desta religião- o corpo é o ponto onde os dois planos se encontram: Ayê (o plano material) e Orun (o plano espiritual). Portanto, o cuidado com a saúde por inteiro –corpo e mente- é parte do cuidado espiritual, sendo que o desequilíbrio entre esses planos pode levar ao adoecimento (11, 13).
Para a prática de médicas e médicos de família e comunidade, alguns pontos devem ser frisados: igualdade e equidade não são sinônimos. Portanto, consultas iguais para todos os pacientes consistem em igualdade, mas não em equidade. Equidade pressupõe dar atenção específica a grupos específicos e, quando se trata de povos de terreiro, existem diferenças no atendimento que precisam ser conhecidas e consideradas. Por exemplo, algumas das interações na página da SBMFC sugeriam que o exame físico é o mesmo, portanto não há que se considerar uma ou outra religião. Porém, esse não é o caso quando tratamos de religiões de matriz africana: em algumas dessas religiões, há restrições para que o corpo seja tocado em determinadas áreas, como na cabeça, por exemplo. Assim, um exame físico que desconsidere as restrições do paciente é uma invasão à sua crença. Considerando que muitos pacientes omitem a sua religião nos serviços de saúde por medo, a omissão de seus fundamentos religiosos pode ser um fator relevante para o insucesso do vínculo e do tratamento (7).
Médicas e médicos de família e comunidade estão vinculados a territórios, muitos dos quais apresentam terreiros de religiões de matriz africana. Em um estudo realizado em Salvador, líderes religiosos relataram que Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Agentes de Endemias se recusam a adentrar os terreiros pertencentes às suas áreas adstritas (14). Situações como essa ferem diretamente o que a Atenção Primária à Saúde se propõe a ser. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), lançada em 13 de maio de 2009 pelo Ministério da Saúde, prevê em suas Diretrizes Gerais a “promoção do reconhecimento dos saberes e práticas populares de saúde, incluindo aqueles preservados pelas religiões de matrizes africanas” (15). Apesar de seus 10 anos de lançamento, essa Política teve baixa adesão a níveis municipal e estadual, sendo pouco conhecida pelos profissionais de saúde (16).
A aproximação entre equipes de saúde e terreiros é fundamental para a efetivação da PNSIPN. O diálogo entre saberes biomédicos e saberes tradicionais beneficiaria os dois lados: o indivíduo que está sendo cuidado e cujos fundamentos religiosos estão sendo considerados, mas também a equipe, que estreita vínculos e dispõe de mais um equipamento social em sua comunidade onde pode desenvolver atividades de promoção e cuidado em saúde (17). Ademais, a compreensão de que a estrutura hierárquica das religiões de matriz africana se baseia na noção de família (observável nas denominações Mãe, Pai, Irmão, Filho, Família de Santo) é uma excelente ferramenta para o trabalho da/do MFC e da equipe (18).
A Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO Saúde) é uma entidade que, desde 2003, promove a interlocução entre rede de saúde e religiões de matriz africana, agregando adeptos dessas religiões, gestores e profissionais de saúde, pesquisadores e lideranças dos movimentos sociais. Um dos materiais produzidos por essa instituição, o “Atagbá – Guia para a promoção da saúde nos terreiros”, está disponível nas “Sugestões de leitura” após as referências desse texto, juntamente com outros materiais para aprofundamento no tema, especialmente relatos de experiências exitosas na aproximação entre serviço de saúde e terreiros.