Seguindo com a série sobre cuidados médicos da população LGBTI, o Grupo de Trabalho de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da SBMFC, aborda no tema de hoje, o cuidado de pessoas transexuais e travestis.
O conteúdo foi produzido pela médica de família e comunidade, membro do GT, Ana Paula Amorim.
Perguntas sobre o cuidado de pessoas transexuais e travestis:
-Como melhor abordar um não binário?
-Como proceder quando pedem medicações hormonais? Tem algum protocolo?
-Hormonização: o que muda no rastreamento?
-Após a terapia de reposição hormonal, quais exames de rastreamento são necessários?
-Para onde encaminhar a paciente trans que deseja fazer cirurgia de mudança de sexo?
Pessoas transexuais e travestis: abordagem e transformações corporais
Como termos e conceitos relacionados à identidade de gênero estão em disputa dentro de diferentes contextos, é importante iniciar este texto com um alinhamento de quais compreensões estarão significadas nos próximos parágrafos. Apesar da literatura científica internacional utilizar a palavra “transgeneridade”, por questões históricas e políticas adotou-se no Brasil o termo “transexualidade” para fazer referência à identidade de gênero de uma pessoa que não corresponde ao gênero designado a ela ao nascimento – este, atribuído a partir de uma correlação naturalizada entre a genitália e o que se espera socialmente de uma pessoa. Dentro desta perspectiva, pessoas que não identificam-se com um dos dois gêneros reconhecidos culturalmente (homem e mulher) também teriam identidade transexual com a especificidade de serem não-binárias, apesar de alguns grupos sociais requisitarem a “não-binaridade” como identidade independente à transexualidade (pela carga que ela traz em relação à perspectiva binária de gênero).
“Travesti” é uma construção identitária brasileira. Este termo foi disseminado em nossa cultura associado à prostituição, exibicionismo, baixa escolaridade, furtos e comportamentos imorais. A Classificação Internacional de Doenças usou o termo em inglês “transvestite” para indicar as pessoas transfemininas que não desejavam cirurgias de redesignação genital e, no Brasil, ele foi equivocadamente traduzido por “travesti”, ao que passou a carregar toda a carga de marginalização social já atribuída a ele. Por motivo de resistência e de ressignificação histórica do termo, algumas pessoas posicionam-se politicamente como “travesti”, utilizando o termo como sinônimo de “mulher transexual”, sem a intenção de que seja indicada diferença da identidade de gênero entre as pessoas que gostariam e as que não gostariam de realizar transformações em seu corpo.(1)
Estudos realizados em diferentes países encontraram até 1,3% da população identificada como transexual(2) e um estudo realizado no Brasil em 2018 (ainda não publicado) demonstrou porcentagem ainda maior(3). Para realizar abordagem adequada a estas pessoas, profissionais de saúde precisam oferecer espaço para que a pessoa possa falar sobre sua identidade de gênero, sem assumir que é possível descobrir a orientação sexual, a identidade de gênero ou o desejo reprodutivo de uma pessoa. É necessário perguntar os termos que cada pessoa acredita definirem sua identidade de gênero, quais termos deseja que a equipe de saúde utilize para referir-se a ela e se deseja ser tratada com pronomes femininos ou masculinos.(4) Esta estratégia permitirá ao MFC reconhecer as pessoas transexuais de seu território e, assim, atentar para seus cuidados.
Pessoas transexuais e travestis podem desejar realizar transformações corporais, com intenção de sentirem-se confortáveis com seu corpo ou de serem reconhecidas socialmente dentro dos parâmetros culturais de um gênero – o que também é percebido como um fator de proteção às violências transfóbicas.(5) Estas transformações podem ser transitórias ou permanentes, através de dispositivos removíveis (como uso de binder, packer, próteses mamárias externas, ocultação de pênis e testículos, etc.), intervenções tradicionalmente consideradas cosméticas (como minoxidil para crescimento de pêlos e laser para remoção de pêlos ou alterações da pele), hipertrofia muscular (com exercícios que geram aumento de glúteos, músculos peitorais, coxa, bíceps, etc.), terapia vocal (para modulação do tom da voz e características da fala), hormonais (para intervir em características reconhecidas como “caracteres sexuais secundários”) ou cirúrgicas. A aplicação de silicone industrial está associada a muitos riscos e é um grande problema de saúde na população de travestis. Cabe ao profissional de saúde acolher as demandas de cada pessoa em relação à sua proposta de transformação corporal e construir junto a ela o melhor plano de cuidado, com base nas perspectivas e nas evidências científicas.
É muito comum que pessoas transexuais realizem terapia hormonal sem acompanhamento de serviços de saúde, muitas vezes com hormônios inadequados (como medicamentos de uso veterinário ou que geram grande risco cardiovascular), de procedência duvidosa (adquiridas a preços altos e no mercado informal) e utilizados incorretamente (em doses perigosas ou aplicados com técnicas inadequadas). Por estes motivos, cabe a MFCs saberem prescrever estes hormônios adequadamente, tanto para redução de danos quanto para garantir o acesso das pessoas transexuais a um serviço que pode lançar sobre elas um olhar de cuidado integral e longitudinal.
Basicamente, a terapia hormonal consiste em uso de testosterona por homens trans ou uso de estrógeno e/ou de antiandrógenos por mulheres transexuais ou travestis. Pessoas não-binárias podem também ter interesse em realizar terapia hormonal. O Ministério da Saúde ainda não disponibilizou protocolo de cuidados clínicos ou cirúrgicos direcionados às pessoas transexuais, mas alguns municípios possuem grupos ou comitês técnicos que podem oferecer recomendações específicas a profissionais de saúde localmente. Um protocolo de 2016 do Departamento de Medicina Família e Comunidade da Universidade de São Francisco – Califórnia (EUA) tem sido muito usado por MFCs no Brasil por estar atualizado em relação a boas evidências científicas e ser facilmente acessado pela internet (https://transcare.ucsf.edu/guidelines)(6), apesar do Brasil não ter disponibilidade de alguns hormônios recomendados (como o valerato/cipionato de estradiol IM e o enantato de testosterona IM). A segunda edição do Tratado de Medicina de Família e Comunidade também incluiu o tema.(5)
Os exames de controle após o início da terapia hormonal estão associados aos efeitos possíveis de cada medicação utilizada. O uso de testosterona em casos de baixo risco deve ser acompanhado com Hematócrito/Hemoglobina, testosterona total e estradiol. O uso de estrógeno é acompanhado com o nível de estradiol e deve-se considerar dosar prolactina (inicialmente ou caso haja sintomas de prolactinoma). O uso de antiandrógenos não requer obrigatoriamente o acompanhamento de Hematócrito/Hemoglobina, mas recomenda-se aferição de testosterona total, função renal e potássio (se utilizada espironolactona). Glicemia e perfil lipídico podem ser considerados em todas as terapias. Estes exames podem ser realizados 4 vezes no primeiro ano e, após este período, anualmente ou em caso de reajuste das doses.(7)
Não existem rastreamentos específicos a serem realizados em pessoas transexuais e as recomendações do Ministério da Saúde contemplam também esta população. Portanto se uma pessoa possui colo uterino, já teve algum tipo de penetração vaginal ao longo da vida e tem entre 25 e 65 anos, deve-se ofertar o papanicolaou. A mamografia pode oferecer o mesmos benefícios e riscos que em mulheres cisgêneras para as pessoas que possuam tecido mamário. Da mesma forma, o rastreamento de câncer de próstata em pessoas assintomáticas não deve ser oferecido sistematicamente a mulheres transexuais ou travestis, assim como a homens cisgêneros. Sorologias para HIV, sífilis e hepatites também podem ser oferecidas de acordo com a percepção de vulnerabilidade a ISTs, principalmente ao se considerar o risco de hepatotoxicidade de algumas medicações utilizadas. Pessoas transmasculinas que possuem práticas sexuais que possam levar a gravidez podem ter interesse em realizar teste gestacional.(5,6)
A densitometria óssea pode ser considerada apenas em pessoas que utilizam bloqueadores hormonais ou que realizaram gonadectomias sem reposição hormonal há mais de 5 anos. Ultrassonografia pélvica ou mamária não são exames de rastreamento para qualquer população.(5)
O Processo Transexualizador do SUS ampliado(8) recomenda hormonioterapia para pessoas que tenham pelo menos 18 anos, assim como limita as cirurgias às pessoas com mais de 21 anos e que estejam em acompanhamento multiprofissional a pelo menos 2 anos. As cirurgias citadas neste documento para mulheres transexuais e travestis, são:
-Redesignação genital: orquiectomia com amputação do pênis, neocolpoplastia e cirurgias complementares (reconstrução da neovagina, meatotomia, meatoplastia, correção dos lábios vulvares, correção de clitóris, tratamento de deiscências e fistulectomia);
-Plástica mamária bilateral: próteses mamárias de silicone;
-Tireoplastia: redução do “Pomo de Adão”; e
-Cirurgia em cordas vocais.
Para homens trans, os procedimentos citados no mesmo documento(8) contemplam:
-Redesignação genital – em caráter experimental(9) e através de processo judicial(10): vaginectomia, neofaloplastia, implante de próteses penianas e testiculares, clitoroplastia;
-Mamoplastia masculinizadora: ressecção de mamas, reposicionamento do complexo aréolo mamilar; e
-Histerectomia com anexectomia e colpectomia: ressecção de útero e ovários.
Apesar destas possibilidades cirúrgicas, a maioria dos serviços públicos que as disponibilizam encontram-se saturados e com poucas vagas, principalmente para procedimentos de redesignação genital (oferecidos por poucos centros hospitalares no Brasil, como os vinculados a serviços universitários: Universidade de São Paulo, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Universidade Federal de Porto Alegre e Universidade Federal de Goiás). Não existe uma lista de todos os serviços que realizam cuidados ambulatoriais ou cirúrgicos específicos para a “população trans”, portanto a informação sobre serviços de referência precisa ser acessada localmente, através da Secretaria Municipal ou Estadual de Saúde. O Grupo de Trabalho de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da SBMFC também pode buscar e compartilhar informações sobre algumas redes locais já estruturadas, pois é composto por MFCs de muitas regiões do país.