Texto número 17 da série sobre 16 dias de ativismo contra a violência relacionada ao gênero, organizada pelo Grupo de Trabalho Mulheres na MFC, com apoio de outros GTs.
Os homens são parte fundamental na discussão sobre a violência de gênero: no lugar de perpetradores, são eles mesmos que devem mudar suas condutas historicamente construídas e socialmente reproduzidas e ajudar seus pares a imprimir essa mudança. Nesse sentido, os médicos de família e comunidade estão em um lugar privilegiado para acolher vítimas e intervir junto aos homens.
Uma das primeiras atitudes a tomar é acreditar que a violência existe. Embora piores condições socioeconômicas sejam um fator de risco para violência, (1,2) ela está presente nas vielas da Rocinha e nos condomínios da Barra da Tijuca; nas mansões dos Jardins e nas casas da Brasilândia; nas palafitas e nas casas de praia; nos ônibus e nos iates. Conversando com suas parentes, amigas e parceiras, o médico ouvirá exemplos de que esse não é um problema só de “comunidades carentes” ou de “mulheres sem instrução”. Olhando para si mesmo, ele possivelmente se lembrará de situações em que cometeu algum abuso físico, psicológico ou sexual em alguma medida. (3)
Outra atitude fundamental é estar alerta para identificar esse problema. O olho roxo e o braço quebrado são apresentações óbvias, mas frequentemente as situações de violência atuais ou passadas estão emaranhadas em queixas medicamente inexplicáveis, dores crônicas, hiperutilização do serviço e quadros depressivos ou somatoformes. (4,5)
A violência de gênero é um tema atravessado por questões morais, e mulheres que buscam ajuda podem sofrer novas violências, tanto nos serviços de saúde quanto na justiça. (6) É indispensável que o médico troque o preconceito pela empatia, as suposições pela escuta ativa e os conselhos fáceis por planos de cuidado compartilhados. Situações de violência também devem ser assunto das reuniões de equipe, as quais são oportunidades para problematizar percepções estereotipadas (e até mesmo cruéis) por parte dos profissionais de saúde. (7) Trabalhar esse tema junto aos homens é muito desafiador, mas pode ajudar a prevenir ou interromper relações abusivas e escaladas de violência. É possível levantar o assunto de forma não acusatória, e alguns homens ficarão satisfeitos por poderem conversar sobre comportamentos e situações que eles também desejam transformar, muitas vezes relacionados a histórias pessoais de abuso ou contextos de sofrimento psíquico. Em vez dos clássicos hipertensão, diabete, obesidade, sedentarismo e câncer de próstata, os grupos de educação em saúde do serviço podem mirar em temas como machismo e violência de gênero, e grupos de homens podem ser formados para conversar sobre masculinidades, comportamentos violentos e relações abusivas em um ambiente protegido e acolhedor. (8,9)
Finalmente, não se pode perder de vista as pessoas que estão ao redor de situações violentas ou relações abusivas, como filhos, irmãos e pais, que podem ser tanto vítimas secundárias dessas situações quanto aliados em planos de enfrentamento
ao problema. A abordagem à violência contra a mulher não se esgota com essas indicações, mas elas já podem ajudar o médico de família e comunidade a ser um agente transformador desse fenômeno – seja na unidade de saúde, com seus colegas de
trabalho; no consultório, com seus pacientes; ou no bar, com seus amigos.
Por Antônio Augusto Dall’Agnol Modesto http://lattes.cnpq.br/3762756472827846
Médico de Família e Comunidade – São Paulo – SP
Referências:
(1) Santos IB et al. Violência contra a mulher na vida: estudo entre usuárias da Atenção Primária. Ciênc. Saúde Coletiva. 2020;25(5):1935-1946. DOI: 10.1590/1413-81232020255.19752018.
(2) Silva RP, Leite FMC. Violências por parceiro íntimo na gestação: prevalências e fatores associados. Rev. Saúde Pública. 2020;54:97. DOI: https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2020054002103.
(3) Schraiber LB et al. Homens, masculinidade e violência: estudo em serviços de atenção primária à saúde. Rev. Bras. Epidemiol. 2012; 15(4): 790-803. DOI: 10.1590/S1415-790X2012000400011.
(4) Tófoli LF, Gonçalves DA, Fortes S. Somatização e sintomas sem explicação médica. In: Gusso G, Lopes JMC, orgs. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 1897-905.
(5) Modesto AAD, Couto MT. Como se estuda o que não se diz: uma revisão sobre demanda oculta. Rev. Bras. Med. Fam. Comunidade. 2016;11(38):1-13. DOI: 10.5712/rbmfc11(38)1250.
(6) Ana Bardella. “Cenas assim são frequentes”: advogadas comentam audiência com Mari Ferrer. UOL Universa [periódico online]. 3 nov 2020. Disponível em https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/11/03/eticamente-questionavel-
advogadas-comentam-defesa-de-aranha-em-audiencia.htm. Acesso em 12 nov 2020.
(7) Vieira EM, Hasse M. Percepções dos profissionais de uma rede intersetorial sobre o atendimento a mulheres em situação de violência. Interface. 2017;21(60):52-62. DOI:10.1590/1807-57622015.0357.
(8) Acosta F, Andrade Filho A, Bronz A. Conversas homem a homem: Grupo reflexivo de gênero. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2004. Coleção Homens e Violência de Gênero, v. 3. 36 p.
(9) Valadares GN. Como criar um grupo de homens, um guia básico. Papo de Homem internet]. 17 maio 2018. Disponível em https://papodehomem.com.br/como-articular-um-grupo-de-homens-guia-basico/. Acesso em 12 nov 2020.