O Fórum Nacional de Residentes em Medicina de Família e Comunidade é o espaço de debates e deliberações relacionados aos posicionamentos dos residentes em Medicina de Família e Comunidade (MFC) de todo o país. Historicamente realizado em espaço próprio durante o Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade (CBMFC), o fórum deste ano foi realizado de forma virtual, com a participação de médicos residentes de todas as regiões do Brasil.
Durante o evento, algumas questões de maior relevância para a comunidade médica residente foram abordadas, como o panorama atual das residências no país; as percepções dos médicos residentes no processo de ensino-aprendizagem; a saúde mental de médicos residentes e questões relacionadas aos direitos humanos e diversidade nos programas de residência médica.
Do panorama e percepções das residências médicas em Medicina de Família e Comunidade no Brasil. Atualmente, o Brasil conta com aproximadamente 7 mil vagas de residência em MFC, com uma ocupação em torno de somente 2,3 mil vagas (32%). Reconhece-se que os programas de residência em MFC no Brasil são os que têm menor taxa de ocupação. Essas vagas são ocupadas de forma heterogênea e em programas com atividades formativas discrepantes. A alta taxa de ociosidade no programa reflete, em grande parte, a disparidade dos serviços de residência médica ao redor do país: em modelos de avaliação, metodologias de ensino, bolsas-complemento, níveis de assistência, variedade de estágios, tipos de preceptoria e outros.
Das disparidades dos programas de residência atuais. Apesar da existência da Matriz de Competências de MFC e de um Currículo Baseado em Competências validado por uma sociedade de especialidade nacional, é frequente o cenário onde os programas de residência não seguem as principais recomendações das diretrizes formativas. Nesse sentido, questões como programas altamente voltados para especialidades focais, cenários de prática alheios à Estratégia Saúde da Família, corpo docente e de preceptoria não especialista em MFC, baixa carteira de serviços em redes de atenção mais tradicionais e ausência de capacitação de preceptoria são algumas das queixas mais frequentes entre os grupos de médicos residentes. Por esses motivos, há importante heterogeneidade na formação dos médicos de família do país.
Em razão disso, entendemos como mandatória a busca não apenas de ocupação das vagas ociosas, mas também o estabelecimento de uma estrutura mínima que garanta formação de qualidade nesses locais, a incluir ferramentas de avaliação dos programas, bem como a exigência de determinadas atividades formativas que sejam mais aplicáveis e específicas que o currículo baseado em competências.
Das questões em saúde mental nos programas de residência. Reconhecemos que os programas de residência em medicina de família e comunidade, atualmente, apresentam tendência de horizontalidade entre coordenação, preceptoria e médicos residentes, quando comparado aos programas de formação em outras especialidades médicas. Apesar disso, queixas relacionadas à saúde mental de médicos residentes ainda são comuns nos espaços de debates, geralmente relacionadas a situações de assédio moral ou a cobrança por produtividade em ambientes de trabalho precários e pouco favoráveis.
A experiência dos residentes que passam por questões do tipo costuma ser de constrangimento e grande dificuldade em obtenção de apoio, muitas vezes obtido a partir dos próprios colegas de residência e com frequente ausência de respaldo em órgãos e gestões superiores. Entendemos, portanto, como papel da SBMFC dar visibilidade a essas questões e promover mais espaços para que se compartilhem tais casos, em busca de solução conjunta entre os programas de modo a diminuir a vulnerabilidade dos médicos residentes que passam por situações do tipo.
Das questões relacionadas aos direitos humanos e diversidade nos programas de residência. Em um contexto de reconstrução de valores humanísticos e sociais a nível global, ainda visualizamos a existência de profissionais médicos e educadores com aparente manifestação de intolerâncias e preconceitos nos espaços de ensino e assistência – com a prática e comentários LGBTQIA+fóbicos, racistas, misóginos e/ou de outras discriminações.
Agravado pela situação de pandemia de COVID-19, que hoje contabiliza mais de 600 mil mortes relacionadas à um projeto de necropolítica de nível nacional, são frequentes os relatos de desrespeito a direitos trabalhistas nos espaços de residência médica, com cargas horárias, muitas vezes, extenuantes, não compatíveis com a manutenção de uma saúde física e mental adequadas para qualquer profissão.
Reconhecemos que, durante o período de residência médica, é mandatório oportunizar o aprendizado sobre os direitos e cuidados das pessoas vulnerabilizadas, garantindo a utilização do nome social por médicas e médicos residentes e pacientes que o desejarem, promovendo estágios que oportunizem a melhoria do atendimento e do acesso dessas populações a suas unidades de saúde, uma vez que muitos médicos de família e comunidade já graduados se sentem capacitados para cuidado adequado a essas populações.
Dos processos de capacitação de formadores. Tratando-se do processo de formação de preceptores em medicina de família e comunidade, reconhecemos uma tendência de melhora progressiva no quesito técnico geral para o ensino. No entanto, dadas as situações de assédio relatadas por muitos residentes, assim como demandas relacionadas à saúde mental, entendemos que a formação de preceptores deve ser pautada em quesitos ampliados de saúde, bem como a necessidade de estabelecimento de processos avaliativos de formação.
Das recomendações e considerações finais. De acordo com o exposto na presente carta, nós, médicas e médicos residentes e jovens médicos em MFC do Brasil, recomendamos:
– que a residência médica seja reconhecida como padrão-ouro na formação de médicos especialistas em MFC no país, com a valorização das atuais estruturas de qualificação de especialistas, como a Prova de Título da SBMFC;
– que sejam criados mecanismos de avaliação global dos programas de residência médica em MFC no Brasil, de modo a garantir a homogeneidade do processo formativo com critérios mínimos reconhecidos pela SBMFC e cumprindo de forma integral a Matriz de Competências de MFC, como por exemplo a criação de um teste de progresso para as residências, em semelhança ao já ocorrido em outras especialidades médicas;
– que os espaços de formação em preceptoria e docência em MFC sejam cada vez mais difundidos e capilarizados, incluindo também um currículo formativo que inclua habilidades para lidar com a diversidade e direitos dos médicos residentes, valorizando não somente a formação técnica, mas também humanística dos educadores;
– que questões como a saúde mental dos médicos residentes sejam discutidas nos espaços oficiais da SBMFC, reconhecendo a importância da temática para o processo de formação e levantando pensamento crítico sobre o atual modelo de capacitação de especialistas no país;
– que a presença de coordenadores e preceptores devidamente formados e titulados em MFC seja cada vez mais difundida nos programas do país, de modo a fortalecer a especialidade;
– que os atuais programas de residências médicas no país reafirmem a importância da formação em Abordagem Comunitária, valorizando aspectos sociais e de fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) para a formação de especialistas capazes de promover mudanças em um contexto de saúde pública e universal;
– que estágios curriculares e espaços de formação em torno da saúde de populações vulnerabilizadas recebam valorização no processo formativo em MFC – como por exemplo Ambulatórios Trans, Consultórios na Rua, Saúde Indígena, Ribeirinha e Quilombolas – de modo a suprir debilidades historicamente reconhecidas na formação médica do país, para oferta de uma saúde digna e adequada a todas as populações;
– que a visão de médicos residentes e médicos jovens seja reconhecida de forma efetiva nos espaços de discussão e deliberação da SBMFC, garantindo participação destes nos eventos oficiais para representação em temáticas que impactam de forma direta nosso grupo e especialidade.
Vitória – ES, 26 de setembro de 2021.
DIRETORES MÉDICOS RESIDENTES DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE
MOVIMENTO WAYNAKAY BRASIL DE JOVENS MÉDICOS E RESIDENTES EM MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE