Lamentavelmente dados recentes evidenciaram que a mortalidade infantil, após décadas em queda, voltou a aumentar no país. Para a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), esse triste cenário está relacionado com o aumento da pobreza, reflexo da crise econômica que o país enfrenta nos últimos anos, particularmente após 2014. A crise econômica e as políticas de austeridade dela resultantes, como a redução do programa bolsa família, afetam diretamente a saúde das crianças e tem impacto previsível na mortalidade infantil (Rasella, 2018).
Entretanto, também cabe a SBMFC repudiar e contrapor as declarações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), que atribuem levianamente o aumento da mortalidade infantil ao modelo de atenção primária à saúde utilizado no SUS, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) (SBP, 2018). Segundo a SBP, a mortalidade infantil estaria associada, entre outras coisas, à ausência do pediatra nas equipes que compõe a ESF. Citam exemplos de casos individuais, que, como veremos, são eminentemente refutados pelos dados de estudos científicos sobre o impacto da implantação da ESF no país (Collucci, 2018, Revista Veja, 2018).
Serviços de atenção primária à saúde baseados no médico de família e comunidade, e sem a participação do pediatra, não são novidade. Há décadas esse é o modelo utilizado em países como Inglaterra, Canadá, Holanda, Portugal, Austrália e outros. Lá, o pediatra tem um papel nas enfermarias, nos leitos de terapia intensiva, nos serviços de urgência e de neonatologia ou nas avaliações em que se faz necessária uma das subespecialidades da pediatria. Entretanto, não participa dos cuidados gerais da criança nos serviços de atenção primária à saúde. Esse modelo demonstra ser muito eficiente e, por isso, é visto como ideal por lá.
Mas, e por aqui, podemos supor a mesma eficiência para o modelo de atenção primária do SUS, a Estratégia de Saúde da Família (ESF)? Existem estudos no país comparando a ESF com os serviços de saúde em arranjos com pediatras (Chomatas, 2009), bem como estudos analisando o comportamento da mortalidade infantil após a implantação da ESF (Rasella, 2010, Rone, 2017). Os resultados são taxativos, a ESF não só está associada a redução na mortalidade infantil como também é superior aos serviços com pediatras. Com base nesses dados, é possível estimar que a expansão da ESF pode levar a uma redução de até 15,4% na mortalidade infantil, e com um efeito fundamental de redução das iniquidades nos indicadores. Em estudo publicado na revista Pediatrics, da Academia Americana de Pediatria, Rasella demonstra que o impacto da ampliação da cobertura da ESF é ainda mais proeminente na mortalidade infantil pós-neonatal. E o que está em análise nestes estudos não é uma ESF com a condição ideal, que seria a presença de um médico de família e comunidade com residência médica e título de especialista em cada equipe, mas sim da ESF com as limitações que ainda tem hoje.
Além disso, são vastas as evidências de que o empobrecimento da população nas crises econômicas tem impacto na saúde das crianças (Rajmil, 2014, Kleanthous, 2016) e de que os programas assistenciais, em particular o programa Bolsa Família, que vinham sendo implementados no Brasil antes da atual crise econômica, e vem sendo reduzidos desde então, foram determinantes para as reduções na mortalidade infantil que vinham ocorrendo até recentemente (Paes-Souza, 2011, Rasella, 2013).
Neste contexto, o que se espera da sociedade brasileira (Governo, Associações de pacientes/Sociedade Civil Organizada, Associações médicas e Universidades) é uma análise técnica sobre o recente dado de aumento da mortalidade infantil para que as medidas necessárias para a reversão do quadro possam ser tomadas.
É momento de deixar de lado o corporativismo falacioso frente a um indicador tão importante do desenvolvimento do país, e passar a formar cada vez mais médicos de família e comunidade para fortalecer e qualificar a política de atenção primária do país, mantendo o processo de expansão da Estratégia de Saúde da Família.
Referências:
Rasella D, Basu S, Hone T, Paes-Sousa R, Ocké-Reis CO, Millett C. Child morbidity and mortality associated with alternative policy responses to the economic crisis in Brazil: A nationwide microsimulation study. PLoS Med. 2018 May 22;15(5):e1002570. doi: 10.1371/journal.pmed.1002570
Sociedade Brasileira de Pediatria. Nota aos Brasileiros: é preciso juntar forças contra a mortalidade infantil. Rio de Janeiro, 16 de julho de 2018. Disponível em:http://www.sbp.com.br/fileadmi
Revista Veja. Até a isso voltamos. Edição 2592, 25 de julho de 2018.
Collucci C. Após aumento de mortalidade infantil, país pode voltar para ‘Mapa da Fome’. Folha de São Paulo, 17 de julho de 2018.
Chomatas E. Avaliação da presença e extensão dos atributos da atenção primária na rede básica de saúde no município de Curitiba, no ano de 2008. Dissertação de mestrado apresentada no programa de pós graduação em epidemiologia da UFRGS. Porto Alegre, 2009. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/1
Rasella D, Aquino R, Barreto ML. Reducing childhood mortality from diarrhea and lower respiratory tract infections in Brazil. Pediatrics. 2010 Sep;126(3):e534-40. doi: 10.1542/peds.2009-3197
Hone T, Rasella D, Barreto ML, Majeed A, Millett C. Association between expansion of primary healthcare and racial inequalities in mortality amenable to primary care in Brazil: A national longitudinal analysis. PLoS Med. 2017 May 30;14(5):e1002306. doi: 10.1371/journal.pmed.1002306
Rajmil L, Fernandez de Sanmamed MJ, Choonara I, Faresjö T, Hjern A, Kozyrskyj AL, Lucas PJ, Raat H, Séguin L, Spencer N, Taylor-Robinson D. Impact of the 2008 economic and financial crisis on child health: a systematic review. Int J Environ Res Public Health. 2014 Jun;11(6):6528-46.
Paes-Sousa R, Santos LM, Miazaki ES. Effects of a conditional cash transfer programme on child nutrition in Brazil. Bull World Health Organ. 2011 Jul 1;89(7):496-503. doi: 10.2471/BLT.10.084202.
Rasella D, Aquino R, Santos CA, Paes-Sousa R, Barreto ML. Effect of a conditional cash transfer programme on childhood mortality: a nationwide analysis of Brazilian municipalities. Lancet. 2013 Jul 6;382(9886):57-64. doi: 10.1016/S0140-6736(13)60715-1.