Por Conrado Hübner Mendes – Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade – SBPC
Artigo originalmente publicado em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2021/09/doutores-do-inferno-fazem-sociedade-brasileira-de-cobaia.shtml?origin=folha.
“Que tipo de médico pode estar envolvido nisso? Que motivos têm os ‘doutores do inferno’? Alguns médicos alemães buscaram glória contribuindo para o bem-estar da humanidade —humanidade apenas como abstração. Estavam comprometidos com uma ciência que lhes permitisse a experimentação humana. Outros alegaram apenas continuar com a prática da cura. Para sua ideologia, a doença era do corpo do Estado. A doença era uma invasão de pessoas de sangue inferior que enfraqueceria a ‘pureza’ do Estado. (…) A maldade deles é evidente?”
Vivien Spitz relatou no livro “Doctors from Hell” (médicos do inferno) o julgamento de médicos nazistas em Nuremberg. Além de detalhar a exploração de vidas e corpos humanos no período, discutiu como a profissão médica pode perpetrar crimes em nome da ciência.
Daquele episódio histórico surgiu o Código de Nuremberg, declaração de princípios de bioética que condicionam experimentos médicos (ver “The Nazi Doctors and the Nuremberg Code”, os médicos nazistas e o Código de Nuremberg, de Annas e Grodin). Visto de início como um “bom código para os bárbaros”, uma aberração alemã que não afetava a profissão médica ocidental, foi sucedido pela Declaração de Helsinki, de 1975, como referência mais universal (ver “Justice at Nuremberg”, justiça em Nuremberg, de Ulf Schmidt).
O dever de consentimento voluntário e informado de seres humanos para se submeterem a testes ou tratamentos é o ponto de partida dessas declarações.
Usurpação médica da dignidade não começa nem se encerra com o nazismo. Exemplo mais recente foi a prática do governo norte-americano na “guerra ao terror“. A técnica do “waterboarding” teve eficácia e intensidade “aperfeiçoadas” por médicos para escapar do limiar técnico-jurídico da tortura (ver relatório “Experiments in Torture”, experimentos em tortura). Calibraram dor e sofrimento para garantir mãos limpas.
O Brasil marcou seu lugar em mais esse capítulo da história universal da infâmia.
Na pandemia, Bolsonaro optou pelo acirramento. O negacionismo não se traduziu em simples inação, mas em gestão sanitária diversionista. Combateu soluções construídas pela comunidade científica global e as substituiu por política paralela. Seu carro-chefe foi o “tratamento precoce”.
Estimulou “vida normal”, sem máscara e isolamento. Qualquer coisa, cura e prevenção estavam na mão. Não eram placebo, pois nada inofensivos. Eram ansiolíticos sociais ao custo de milhares de mortes individuais.
Governo fez de pacientes e da sociedade em geral cobaias de um experimento humano de morte em massa. A estratégia foi propagar o vírus (ver boletim “Direitos na Pandemia n. 10”, Cepedisa-USP e Conectas). Enquanto isso, fomos distraídos por comprimidos e nebulizações. Tinham ciência da multiplicação exponencial da letalidade, mas vai que a imunidade coletiva brotasse mais rápido?
Nossos “doutores do inferno” apareceram. O respaldo jurídico-corporativo veio do Conselho Federal de Medicina, cujo parecer liberou erro médico sob o invólucro de “autonomia médica”. Como se autonomia protegesse erro crasso. Na ONU, Bolsonaro fez menção honrosa ao CFM. Representação ao Ministério Público do médico e cientista Bruno Caramelli, oriunda de abaixo-assinado de 60 mil médicos, esclarece as ilegalidades do parecer ainda vigente.
O respaldo científico tabajara, ao que parece, veio também da empresa Prevent Senior, suspeita de ter ministrado kit Covid sem consentimento, omitido mortes por Covid e feito recomendações com base em estudos espúrios. Consentimento desinformado e induzido por autoridade médica não é consentimento.
Ainda menos quando corroborado por agressiva pressão governamental e pessoal de presidente. Muito menos quando já demonstrada ineficácia do tratamento.
A liberdade para exercer a medicina não inclui a liberdade para charlatanear e deixar morrer. O contrato com a morte apareceu nessa variante da liberdade bolsonarista. Outra vez.
Reconstruir a teia de responsabilidades civis e criminais por 600 mil mortes e por colapso socioeconômico exige apontar cúmplices e partícipes, públicos e privados, individuais e corporativos. Do relatório da CPI do Senado se espera o começo desse processo de reparação.
Robert Jackson, juiz em Nuremberg, alertou: “Os erros que buscamos punir foram tão calculados, tão malignos e tão devastadores que a civilização não pode ignorá-los, porque não pode sobreviver à sua repetição”.