A Diretoria da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade – SBMFC vê com preocupação o lançamento do Programa Cuida Mais Brasil, apresentado em vídeo do Ministério da Saúde, no dia de hoje, 6 de janeiro de 2022.
Não se identificam nas falas dos representantes do Ministério da Saúde justificativas cientificamente embasadas para mudança de rumos na Estratégia Saúde da Família – ESF, modelo comprovadamente exitoso de Atenção Primária em nosso país e que tem demonstrado melhorias fundamentais em relação aos indicadores de saúde, inclusive àqueles relacionados à saúde das crianças e adolescentes, como também à saúde da mulher e da gestação, como pode ser exemplificado em diversos estudos de relevância nacional e internacional.(1,2,3,4,5,6,7,8, 9,10)
O sucesso da Estratégia Saúde da Família está baseado em um modelo que guarda referência aos atributos da Atenção Primária à Saúde de qualidade. As ações de cuidado da ESF são desenvolvidas por uma equipe com médicas/os, enfermeiras/os, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde. São pautadas no conhecimento e cuidado longitudinal do território, das famílias e pessoas que habitam no mesmo, numa perspectiva de atenção integral.
Neste sentido, a participação de outros especialistas, ou outras profissões da saúde, na ESF pode e deve ser realizada nas equipes dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família – NASF, que são conformadas de acordo com o perfil epidemiológico da população adscrita. Uma equipe de NASF pode apoiar o trabalho de equipes de SF, em uma proporção idealmente de 4 a 6 equipes de SF para uma de NASF. Isto permitiria a incorporação de cerca de 7.000 Pediatras e Gineco-obstetras, no cenário atual.
Enquanto o Governo Federal tenta explicar sua proposta, ignora o acúmulo de evidências, mais pronunciadamente desde a década de 1960, que apontam que médicas e médicos especialistas em APS – os/as Médicos/as de Família e Comunidade – obtêm melhores resultados de saúde do que vários especialistas atendendo uma mesma pessoa. Deixam de observar a evolução da saúde no Brasil com a instalação, aperfeiçoamento e expansão da Estratégia Saúde da Família, da lógica de Redes de Atenção à Saúde e com o aprimoramento da gestão da educação em saúde. Com base nas melhores evidências mundiais, o estado brasileiro tem investido nas últimas décadas na qualidade para formação de Médicas e Médicos de Família e Comunidade com a expansão de programas de residência médica e investimento na Atenção Primária à Saúde, mesmo ainda bem abaixo das metas desejadas, enfrentando grandes desafios como a disputa por recursos no orçamento, a implantação de limites de investimento na saúde (EC 95) e o pensamento retrógrado que sempre se apresenta, de várias formas, tentando resgatar a fragmentação da assistência, modelos com menor eficiência e eficácia.
Médicas e Médicos de Família e Comunidade qualificados, com trabalho em equipe, com o apoio da SBMFC e de políticas abrangentes de investimento na qualidade da Atenção Primária à Saúde no Brasil conseguiram nos últimos anos reduzir a mortalidade infantil, reduzir o número de internações hospitalares e ampliar a cobertura do acesso à saúde, inclusive nas partes mais distantes dos grandes centros, mais carentes de recursos em geral. Estes resultados são observados também em estados e grandes cidades que investiram na Estratégia Saúde da Família e na formação e fixação de médicas e médicos de família e comunidade. A comparação com o modelo anterior, muito parecido com o proposto pelo programa apresentado hoje pelo MS, mostra a superioridade da Estratégia Saúde da Família com especialistas em APS bem formados.
Ao invés de reavivar políticas e modelos ultrapassados, é preciso reafirmar o modelo Estratégia Saúde da Família como sendo mais custo-efetivo, de eficácia demonstrada, com maior impacto inclusive na redução de internações hospitalares por condições sensíveis à atenção primária, conforme descrito em extensa literatura científica.
É importante ressaltar que não nos opomos a presença das especialidades médicas em questão em arranjos em que apoiam as equipes de saúde da família no cuidado às pessoas, na lógica de matriciamento em saúde ou cuidado compartilhado. Já era possível a presença de Gineco-obstetras e Pediatras nas equipes dos NASF, sendo que o Governo Federal justamente extinguiu o financiamento específico para estes Núcleos em 2019.
Entendemos que o fortalecimento e a qualificação progressiva da ESF e do NASF (ao contrário do desmonte que tem sido apontado nos últimos anos) é a melhor forma de expandir a APS, sem fragmentação do cuidado.
Consideramos um grande equívoco que, mais uma vez, políticas do Governo Federal tendem a reforçar o paradigma biomédico no âmbito da APS, desconsiderando a sua complexidade do cuidado. Soluções tecnocráticas não respondem às demandas apresentadas em um cenário onde cada vez mais pessoas estão em situação de vulnerabilidade. Devemos construir políticas públicas que também sejam direcionadas pela determinação social do processo saúde-doença e pelo enfrentamento ao racismo, LGBTfobia, à desigualdade de gênero e a tantas violências que estão presentes na realidade da nossa população.
Fortalecer e investir na Estratégia Saúde da Família é o caminho certo para dar continuidade à reforma do sistema de saúde brasileiro, como já fartamente evidenciado, garantindo o Sistema Único de Saúde universal e do tamanho que a população do Brasil precisa.
Referências: