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SBMFC entrevista Claunara Schilling

11 de dezembro de 2020

Claunara Schilling é médica de Família e Comunidade. Doutora em Epidemiologia pelo PPGEPID/UFRGS. Professora Adjunta da Faculdade de Medicina no Departamento de Medicina Social da UFRGS, Docente do Mestrado Profissional em Avaliação e Produção de Tecnologias para o SUS, do Grupo Hospitalar Conceição e Chefe do Serviço de Atenção Primária à Saúde HCPA desde setembro de 2020. Coordenou a Saúde da Família de Porto Alegre entre 1998 e 2001. Foi consultora e assessora do Ministério da Saúde de 2002 a 2008.
 
SBMFC: Na época que vc escolheu a residência de MFC, quais eram os desafios dessa decisão?

Claunara: a decisão pela MFC foi a partir de uma experiência, em um estagio de ferias da faculdade, em 1992, na Unidade Floresta do GHC, em 1992. Me formei em julho de 1994, e apesar de ter tiro uma rápida experiencia de trabalhar em uma pequena cidade do interior, por indicação de um Professor, para substituir uma casal de médicos que iria se mudar dessa cidade, a decisão por fazer residência já estava tomada. Em 1994 é lançado o PSF e o município de Porto Alegre inicia a proposta de implantação, contrata as primeiras equipes, via associação de moradores, e eu faço o processo seletivo, e entro no final da minha residência, em dezembro de 1996, para uma equipe de PSF em Porto Alegre. Ou seja, já na residência, havia oferta de trabalho para o MFC (havia feito um concurso em uma cidade do interior, Santa Rosa, que também tinha um histórico de investir na APS, com um MFC que estava na gestão desse município, na época), e o maior desafio era encontrar condições de trabalho. Embora tivéssemos uma MFC na coordenação da SF na época, a compreensão da abrangência do que podíamos fazer na APS era restrita, desde a gerencia local, em não fornecer material para procedimentos, como sutura, por exemplo, até o arquiteto, para fazer reforma na unidade, com frases como “isso é um PSF”, não faz essas coisas….Além, é claro, da fragilidade da forma de contratação, que deixava, na época, os profissionais à mercê do proselitismo  “participativo”, qdo presidentes de associação de bairro assumiram o papel do estado, “contratando” trabalhadores.

SBMFC: Qual era o campo de trabalho assim que você se formou? Conte um pouco sobre os anos iniciais da sua carreira. 
Claunara: Meu campo já foi da Saúde da Família. Tive essa rápida experiência entre minha formatura e a entrada na residência, que me mostrou a importância de ficar mais segura, não só em relação à clínica, que essa não era a maior dificuldade, mas em relação às “ferramentas” do MFC. E ter decidido pela residência, e ter tido a sorte de fazê-la em uma unidade cujos profissionais estavam no exercício de suas formações acadêmicas, então, eu li Marx pela primeira vez, com a Margarita Dierkcs, MFC que estudava materialismo dialético, socioantropologia da saúde e observação participante, com a Maria Cristina Giacomazzi, MFC que estudava antropologia, medicina baseada em evidencias, com o MFC Airton Stein, aprendi epidemiologia dos serviços de saúde e que os serviços também produzem conhecimento, com a Silvia Takeda, aprendi planejamento comunicativo e li Habermas, com a odontóloga Barbara Raupp, aprendi a fazer puericultura com a Enfa Lisiane Perico, e com a psicóloga Vera Pasini , cartografia, de Deleuze e Guattari, e com a Andreia Iung, assistente social, a empoderar as mulheres e levar em conta as necessidades coletivas das pessoas que atendíamos. Enfim, eu tive essa sorte, eu aprendi com todas essas pessoas, minha residência e essas pessoas (além, é claro, dos usuários) me fizeram o que sou hoje. 
 

Foto: arquivo pessoal

 
SBMFC: Como foi trabalhar na gestão do SUS na implantação da Estratégia de Saúde da Família?

Claunara: Minha inserção na gestão foi a partir da coordenação da unidade que entrei como medica em 1996, dois anos depois (1998) fiz um concurso para o município de Porto Alegre e fui convidada – por aquela MFC que havia implantada a SF em Poa (Maria da Gloria  Accioly Sirena) a assumir a coordenação do então Programa de Saúde da Família. Minha tarefa era substituir a relação contratual das associações de moradores, para, na época um convênio com a FAURGS (fundação de apoio à UFRGS), com uma taxa administrativa de 5% (fico pensando hj como fiz essa negociação!! Eu tinha 33 anos) e como contraparte as unidades de SF serviriam de estágio para alunos da UFRGS (estamos falando de uma época em que os curriculuns das áreas da saúde não continham cenários na APS). Todos os profissionais, que já haviam passado por processo seletivo,  foram admitidos pela fundação. Isso durou até uma mudança na gestão municipal e foi substituída por uma OS, que até hoje responde por problemas nas prestações de conta, etc. Como Porto Alegre vive HOJE, uma situação dramática de demissão de mais de 500 trabalhadores da APS, em plena pandemia, pela extinção do IMESF, considerado inconstitucional pelo STF, e nenhum será mantido na nova forma de contratação prevista. É uma dor muito grande viver isso nesse momento. Importante relatar, que o Conselho Municipal de Saúde na época foi contrario a essa forma de contratação dos trabalhadores, e somente aprovou o PSF, com uma avaliação , um ano após, de sua qualidade, para mante-lo. Claro, que com um ano já tínhamos resultados no acesso, nas imunizações, nos pre-natais, nos tratamentos de condições crônicas, tanto que nossa experiencia ficou entre 10 na Primeira Mostra de SF. E isso graças aos trabalhadores que fizeram parte dessa construção naquele momento.

SBMFC: Hoje sua atuação é voltada bastante para pesquisa em Atenção Primária. Qual seria sua orientação para quem deseja seguir nessa área de atuação?

Claunara: Dessa experiencia na coordenação da SF em Porto Alegre, e por ter tido uma colega na residência , Cristiana Aranha, que trabalhou como MFC na gestão municipal de um município mineiro, cujo secretario era Luis Fernando Rolim Sampaio, que trabalhava no MS, na então Secretaria de Políticas, fui convidada para o MS. Em 2000 eu havia entrado no processo seletivo do SSC/GHC, então solicitei licença para tratamento de interesse, no GHC e na SMS, e em 2001 fui para Brasilia. Fui a primeira MFC no MS. O que fiz, em cada espaço de assessoria e de direção que passei, foi levar a discussão do significado de ter um SUS orientado pela APS, uma busca incessante de evidências, com pesquisas, com relações internacionais, com representação dos Estados e Municípios, de que, no dizer de Habicht e Victora, não precisávamos demonstrar o impacto de uma politica que já tem evidencias de sua efetividade, precisávamos demonstrar se ela estava chegando a quem dela mais precisava.

Assim foi minha relação com a pesquisa, com a busca de evidencias, com buscar respostas nos serviços e com elas “negociar”, Em todos os espaços de gestão que ocupei, da gerencia de uma UBS (PSF Esmeralda, de 1996 a 1998), da Coordenação do PSF , de 2008 a 2001, da direção do DAB, de 2008 a 2010, da gerencia do SSC/GHC, de 2011 a 2013, e atualmente, na chefia da UBS Santa Cecilia, do HCPA, sempre enfrentei a contra hegemonia do que realmente deveria ser a prioridade – traduzida pelos investimentos – no SUS. E sempre tive convicção , que onde ocupei esses “cargos” eu teria que ser andragógica, ou seja, explicar o que é um sistema de saúde, cujas “pessoas” estejam no centro, aquilo que aprendi e sou, como MFC.

 

Foto: arquivo pessoal

 
SBMFC: Deseja mandar uma mensagem para os/as MFCs do Brasil? 
Claunara: Estamos em um período de muito descrédito na politica e nos políticos, mas é importante reforçar aquilo que talvez a sociedade brasileira tenha precisado de uma pandemia para ver, que manter um SUS público e Universal, precisa da decisão da sociedade – incluídos os profissionais de saúde – de que ele precisa de recursos e que é a sociedade que o sustenta. E também que essa Politica Social, tão exitosa, não pode ser “bolida”, tem que ser tratada como um sitio arqueológico, e ser tocada com aqueles  pincéis do pelo mais fino usado pelos arqueólogos, para não haver nenhuma ruptura,  para não “trincar”, para não romper e abalar irreversivelmente essa construção de 30 anos. Esse texto, cuja autoria é do meu marido, que é musico e compositor, é sobre a cultura, eu surrupiei dele para dizer que o SUS e a Saude da Família, tem também essa delicadeza, chegamos até aqui por esforço de muitos, e temos ainda enormes desafios no acesso ao SUS e à APS pela população brasileira. Mas somos 20% de toda a força de trabalho do SUS, temos que ocupar mais espaço, temos que conquistar a sociedade brasileira em cada relação interpessoal que estabelecemos. E nossa estratégia tem uma riqueza, uma singularidade: território e equipe multi. E que isso só pode ser alterado com muito boa e convincente justificativa, as novas gerações devem integrar-se a esse sistema, e a essa luta para sua manutenção e qualidade.