Texto número 22 da série sobre 16 dias de ativismo contra a violência relacionada ao gênero, organizada pelo Grupo de Trabalho Mulheres na MFC, com apoio de outros GTs.
No encerramento desta série de postagens sobre diferentes aspectos da violência de gênero a ser combatida, nos propomos a discutir sobre o assédio médico.
Assédio sexual é definido pelo código penal como o ato de “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.” (1) O fato do médico ter a função social de exercer o cuidado em saúde, de mitigar o sofrimento da pessoa que o busca – muitas vezes em situação de fragilidade e vulnerabilidade – e usar desse acesso a intimidade da pessoa e da confiança que lhe é tida para praticar atos de violência torna o fenômeno ainda mais perverso.
Contra a vítima, pesam: a dúvida imediata sobre o ocorrido (dado que o contexto de exame clínico pode não lhe ser familiar); a ausência de outras provas, já que usualmente a consulta médica ocorre sem testemunhas em lugar fechado; a desqualificação do relato da vítima, tão frequente com mulheres em situação de violência, mas especificamente nesse caso contra um profissional de prestígio na sociedade; o medo das repercussões da denúncia, que pode incluir a violência institucional referida acima, bem como a frequente culpabilização da vítima e humilhação pública (2) (3). É razoável supor que essa combinação de fatores faça com que poucas mulheres denunciem formalmente, porém é difícil estimar.
São poucos os dados publicizados ou artigos científicos que dimensionam o tamanho e o impacto do fenômeno. Em função disso, contamos atualmente com histórias e denúncias divulgadas, principalmente, através de equipes jornalísticas. O portal Catraca Livre em 2016 entrevistou 700 mulheres de diferentes estados do país e, dessas, 374 mulheres (53%) afirmaram ter sofrido abuso sexual ou moral (desde condutas constrangedoras ou abusivas até estupro) em consultas com ginecologistas (4). Apenas 4% dessas mulheres realizou a denúncia formalmente.
Em 2019 o tema voltou a movimentar as redes sociais. Uma reportagem do Intercept Brasil divulgou registro de 1.734 casos de violência sexual em instituições de saúde em apenas 9 estados brasileiros que forneceram os dados de 2014 a 2019 (5). As denúncias envolviam diferentes profissões da saúde e lugares, como 16 estupros em CTIs e UTIs registrados em SP. E uma onda de postagens com a hashtag #OndeDói inundou as redes sociais com relatos de violências causadas por profissionais de saúde – o que tem alimentado, por parte de organizações da sociedade civil, o acolhimento das mulheres e o registro desses dados (6). Importante destacar que além de violência sexual, mulheres relataram também terem sofrido violências racistas, lesbofóbicas, transfóbicas, gordofóbicas, obstétricas.
Ainda que seja uma face muito perversa da prática médica, e por isso tão difícil de ser encarada pelos profissionais que exercem sua função de forma ética e humanizada, é importante compreendermos que, numa sociedade que subjuga as mulheres sistematicamente como mecanismo de perpetuação das estruturas patriarcais, a Medicina não passa isenta. O fato de encararmos que também parte dos médicos compõem esse problema, nos permite criar estratégias de identificar o fenômeno, de acolher as vítimas, de abordar de forma integral as repercussões na saúde dessas mulheres e de combater a violência de gênero dentro das instituições de saúde, dentro do Estado, que tem o dever de garantir os direitos das mulheres. E a Medicina de Família de Comunidade tem um lugar muito potencial nessa luta.
Por Bruna Ballarotti http://lattes.cnpq.br/8905324292925547
Referências: