Patrícia Jaime é Nutricionista, Professora associada do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. Mestre e Doutora em Saúde Pública pela FSP/USP. Pós-Doutora em Epidemiologia Nutricional pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde – NUPENS / USP e em Políticas Públicas de Alimentação e Nutrição pela London School of Hygiene and Tropical Medicine, Reino Unido.
SBMFC: Qual a importância da nutrição na saúde das pessoas?
Patrícia: Podemos entender a Nutrição, por um lado, como a ciência que estuda a relação entre com o homem e a alimentação, que se expressa cotidianamente por meio de um comportamento que é a alimentação. É reconhecido que a alimentação é um condicionante e determinante de saúde. A qualidade da alimentação e do estado nutricional têm implicações sobre a saúde do individuo e das coletividades.
Para além da prescrição de uma dieta para prevenção e tratamentos de agravos em saúde relacionados com a alimentação, os profissionais que atuam na área devem compreender e abordar a alimentação como um direito social.
Na Constituição Federal do Brasil de 1988, a saúde foi assumida como um direito e a partir disso se desenvolveu um conjunto de ações que envolvem a criação do SUS. Mas a compreensão da alimentação como direito social-inter-relacionado, interdependente e indivisível em relação ao direito à saúde- só se deu em 2010, a partir de uma emenda constitucional. A partir desse reconhecimento, o Estado precisou desenvolver uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional que se volta a garantia do acesso a alimentos de qualidade e que promova práticas da saúde que sejam sustentáveis e respeitem nossas tradições alimentares e nossas necessidades de saúde e nutrição.
SBMFC: Podemos considerar a desnutrição um grave problema de saúde pública no Brasil?
Patrícia: Os estudos epidemiológicos mostram que tivemos uma queda bastante significativa, resultado de um investimento de políticas públicas, ainda mais as voltadas a determinantes sociais como aumento da renda e da escolaridade, acesso à serviços de saúde, em especial de atenção primária, e melhora no saneamento básico. Mas ainda temos grupos populacionais de maior vulnerabilidade. Por exemplo, crianças da região Norte, as indígenas, as pobres. O que nos preocupa é o enfraquecimento de políticas públicas que se mostraram exitosas no controle da desnutrição no Brasil, o que pode provocar uma nova mudança na expressão da doença em nível populacional, inclusive com impacto em indicadores de mortalidade. Quando falo de enfraquecimento nas respostas experimentadas, refiro-me ao congelamento de gastos públicos nos campos sociais, na saúde, educação e assistência social.
Além da desnutrição, existe a má-nutrição. A desnutrição é um fenômeno biológico onde há déficit de crescimento, de peso e estatura. A má-nutrição envolve um conjunto de problemas nutricionais, por exemplo a carência de nutrientes no organismo como a anemia por deficiência de ferro que é comum em criança e nas mulheres em idade fértil. Ainda, temos a obesidade, que é também expressão de insegurança alimentar e de violação do direito humano à alimentação adequada, com base de uma alimentação que não é adequada e nem promotora da saúde. O sobrepeso e obesidade estão associados às doenças crônicas não-transmissíveis, como diabetes, hipertensão e até alguns tipos de câncer.
A má-nutrição contempla um conjunto de agravos, a obesidade é o mais grave prevalente segundo os inquéritos populacionais.
SBMFC: Como é a atuação do/a nutricionista na Atenção Primária? Quais pacientes estão elegíveis à consulta com foco na melhoria da nutrição?
Patrícia: O primeiro aspecto a se considerar é que a atenção nutricional não é uma prática exclusiva do nutricionista. A Politica Nacional de Alimentação e Nutrição/ PNAN tem como primeira diretriz a atenção nutricional, que compreende os cuidados relativos à alimentação e nutrição voltados à promoção e proteção da saúde, prevenção, diagnóstico e tratamento de agravos, trabalhando na perspectiva da integralidade do cuidado. Assim, a atenção nutricional deve compor um projeto terapêutico individual ou uma intervenção comunitária, sempre que houver necessidade .
O nutricionista deve compor uma equipe que compartilha responsabilidades, respeitadas as competências e atribuições de cada profissão. Ou seja, buscando o equilíbrio entre campo e núcleo de saberes e práticas. O nutricionista é essencial para qualificar as ações de promoção da alimentação saudável e de aconselhamento alimentar, desenvolvidas pelas equipes na Atenção Primária. Esse papel de matriciamento em alimentação acontece frequentemente nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família. O nutricionista deve apoiar a difusão das recomendações nutricionais e das mensagens de diretrizes alimentares como aquelas apresentadas no Guia Alimentar da População Brasileira, publicado pelo Ministério da Saude em 2014, para que essas sejam efetivamente utilizadas em uma perspectiva interprofissional da educação em saúde.
Em situações específicas, o nutricionista deve atuar na prescrição dietética e no aconselhamento alimentar.
SBMFC: Como a Medicina de Família e a Nutrição podem se aliar para proporcionar uma melhor qualidade de vida ao paciente?
SBMFC: Essa aproximação é super importante porque sabemos da peso da alimentação na definição do quadro epidemiológico atual. Obesidade, diabetes e hipertensão são problemas frequentes no contexto da APS, o trabalho colaborativo entre médicos/médicas de família e nutricionista, qualifica a atenção e traz o aconselhamento alimentar e o manejo da dieta como componente integrado à clínica médica. Eu poderia citar outros exemplos comuns na APS que demandam essa integração e articulação profissional, destaco aqui o aconselhamento em amamentação e alimentação complementar na primeira infância, tão fundamentais na agenda de saúde da criança.
SBMFC: É possível apontar quais doenças são mais controladas com uma alimentação nutritiva e recomendada por especialistas?
Patrícia: Em termos de magnitude, sem dúvida alguma, a obesidade é o principal problema nutricional na atualidade, sendo reconhecida como um dos principais fatores de risco para doenças crônicas não transmissíveis, em especial para o diabetes. As doenças crônicas demandam intervenções em alimentação, tanto para prevenção como no tratamento. Mas devemos pensar que a APS tem uma grande responsabilidade com as ações de promoção da saúde. Como mencionado anteriormente no exemplo da promoção e do aconselhamento em aleitamento materno e na posterior introdução alimentar que determinará práticas e hábitos alimentares futuros e o padrão de crescimento e desenvolvimento da criança.
Outro exemplo seria o componente de vigilância do estado nutricional e aconselhamento alimentar de gestantes, como parte dos cuidados no pré-natal. Com esse olhar para ciclos de vida, lembro que a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde/ PNDS, de 2006, avaliou o estado de saúde e nutrição de crianças menores de 5 anos e mulheres em idade fértil, sinalizando que desnutrição, obesidade, deficiência de micronutrientes que levam à anemia ou hipovitaminose A são problemas que merecem atenção dos profissionais de saúde. Um novo inquérito epidemiológico em curso, Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil / ENANI atualizará as informações disponíveis e poderá orientar as ações de alimentação e nutrição na APS.
Por fim, é preciso lembrar que devemos lidar, mais e mais, com novos riscos alimentares, para além dos nutrientes aquém ou além das necessidades corporais. Destaco o consumo de alimentos contaminados por agrotóxicos e a relação entre o excessivo consumo de carnes e a sustentabilidade ambiental. Essas preocupações irão bater à porta da APS e respostas dentro dos limites de competência do cuidado em saúde deverão ser dadas.
SBMFC: Como um médico/a de família e comunidade pode se adequar para promover uma melhor nutrição para as pessoas atendidas?
Patrícia: A minha principal recomendação é um convite para que conheçam o Guia Alimentar da População Brasileira, uma publicação do Ministério da Saúde que traz as diretrizes oficiais sobre alimentação saudável. Esse documento tem sido elogiado internacionalmente e influenciado a revisão/publicação de guias alimentares de outros países, como do Uruguai, Equador, Peru, Canadá e França. Mas muitos profissionais da APS ainda não o conhecem e utilizam nas ações de educação e aconselhamento alimentar. Seria interessante que as mensagens do Guia Alimentar fossem incorporadas nas orientações dos médicos/médicas de família.
SBMFC: É possível promover uma alimentação mais saudável para pacientes de todas as classes sociais?
Patrícia: Sim, é possível. O padrão alimentar recomendado no Guia Alimentar já citado derivou de um inquérito populacional, a Pesquisa de Orçamentos Familiares /POF do IBGE, feito com amostra representativa da população brasileira de todas as regiões e classes sociais. Ou seja, não é uma dieta idealizada, mas sim derivada da realidade brasileira e que considera as evidências científicas mais atuais sobre alimentação, nutrição e saúde.
É muito comum que se restrinja a alimentação saudável ao consumo de frutas e legumes que podem ter, nem sempre, um custo caloria/grama de alimento mais alto em relação a outros grupos alimentares. Mas alimentação saudável não se limita a esses alimentos. Ao contrário, o Guia Alimentar apresenta uma regra de ouro que é prefira uma variedade de alimentos in natura e minimamente processados (como cereais, leguminosas, raízes e tubérculos, frutas, verduras, carnes, ovos, leite e lácteos) à alimentos ultraprocessados. O padrão alimentar “comida de verdade” é mais barato do que aquele com grande participação de alimentos ultraprocessados na composição calórica total da dieta.
É claro que há obstáculos, como renda, disponibilidade e tempo, que dificultam a adoção de práticas alimentares saudáveis. O Guia Alimentar tem um capítulo que trata deste tema. A superação de tais obstáculos, em menor escala, pode estar ao alcance dos indivíduos com apoio dos profissionais e serviços de saúde. Mas há determinantes sociais e ambientais que extrapolam o domínio do setor saúde. Da mesma forma como ocorre em outros temas, como saúde mental, violências e sedentarismo.
SBMFC: Gostaria de compartilhar artigos e estudos para os nossos seguidores?
Monteiro, C. A. et al. The un Decade of Nutrition, the NOVA food classification and the trouble with ultra-processing. Public Health Nutrition 21, 5–17, 2018.
Jaime, P.C. Políticas Públicas de Alimentação e Nutrição. Rio de Janeiro: Editora Atheneu. 1ª ed. 2019.