Paulo Celso Nogueira Fontão é médico sanitarista e especialista em medicina de família e comunidade pela SBMFC. Integra o Grupo de Trabalho de Saúde e Espiritualidade e é professor de espiritualidade e tanatologia na Faculdade de Medicina do Hospital Santa Marcelina, em São Paulo (SP).
De que forma a fé pode auxiliar no tratamento médico?
Paulo Fontão: A fé, ou melhor, a espiritualidade, vem trazer luz ao nosso trabalho em saúde não só médico, mas de toda a equipe porque o modelo de saúde baseado somente na eficiência, produtividade, perfeição física e envelhecimento com sucesso não é sustentável e real. A saúde física não é tudo. Centenas de pesquisas têm se apresentado em todo o mundo abordando essa dimensão que traz em si um tanto de mistério, mas também um mundo de carinho e amor. A revista The Lancet publicou um número inteiro tratando do assunto. Se colocarmos na busca do Google, as palavras ‘saúde’ e ‘espiritualidade’ aparecem em mais de 3,6 milhões de referências.
Espiritualidade, então, é igual a religiosidade?
Paulo: Não. Penso que uma boa definição nos traz Harold Koenig, psiquiatra e pesquisador na Duke University (leia aqui uma entrevista do especialista para a revista Veja), nos EUA, talvez a maior referência hoje em pesquisas na área: “Espiritualidade é a busca pessoal pelo entendimento de respostas a questões sobre a vida, seu significado e relações com o sagrado e o transcendente que pode ou não estar relacionada a propostas de uma determinada religião”.
Médicos precisam estar mais sensíveis à questão?
Paulo: Sim, é uma das dimensões do ser humano. Não há como deixar isso de fora se quisermos ver de forma integral as pessoas cuidadas por nós. A partir de 1992, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a considerar a dimensão espiritual como parte do conceito de saúde. Essa dimensão espiritual na medicina hoje é objeto de estudo de centenas de pesquisadores.
A espiritualidade, então, joga a favor do médico?
Paulo: Sim, mas ele deve fazer isso com respeito e delicadeza sem julgar o outro e se esquecendo de suas convicções pessoais. O médico deve aceitar incondicionalmente o outro e isso inclui sua tradição religiosa, que pode, sim, “jogar a favor” no processo terapêutico. Ao utilizar essa competência cultural a seu favor, ele não desconsidera esse elemento tão fundamental na vida das pessoas. Nós, médicos, temos de ter essa “competência cultural”, como assim é chamado esse princípio de nossas ações na atenção primária à saúde, e utilizar em benefício da pessoa não apenas sua fé, mas também a rede de suporte de sua igreja, comunidade de vivências etc.
E quando a espiritualidade pode ser danosa para o paciente?
Paulo: Já se sabe que uma fé religiosa ou uma experiência espiritual pode influenciar positiva ou negativamente um processo terapêutico dependendo da imagem que tenho daquele ser sobrenatural em que acredito. Falar em ruim ou bom depende muito da experiência religiosa ou espiritual do próprio paciente. Se for um Deus cheio de amor, compassivo, que me ama além de qualquer fragilidade minha, isso tem um efeito positivo. Se for um Deus punidor, que caça o pecador todo o tempo e o pune, o efeito pode ser até de piora. Há centenas de trabalhos nesse sentido.
Como o médico deve falar de espiritualidade com o paciente?
Paulo: Há vários modelos de anamnese espiritual usados em alguns serviços dos EUA e Europa. Temos de fazer isso com uma enorme delicadeza, sem induzir, julgar ou tentar convencer ninguém e muito menos impor convicções. Se não for feito da maneira correta, criamos muros em vez de novas pontes e comprometemos o processo terapêutico estabelecido entre o cuidador e o cuidado.
O pensamento positivo ajuda durante o tratamento?
Paulo: Sim, terá reflexos positivos no processo. Precisamos ser agentes de saúde que têm esse olhar que vê além da dor e do sofrimento. Dr. Adib Jatene nos disse algum tempo antes de morrer: “Precisamos de médicos especialistas em gente”. Ele tem razão! Um aluno meu, de tradição religiosa muçulmana, em meio a uma aula da disciplina de espiritualidade e tanatologia em que discutíamos essas questões, compartilhou em uma rede social: “O cérebro do médico deve estar no coração”. É isso.