Texto número 14 da série sobre 16 dias de ativismo contra a violência relacionada ao gênero, organizada pelo Grupo de Trabalho Mulheres na MFC, com apoio de outros GTs.
A violência contra a mulher, além de se configurar uma das mais frequentes violações de direitos humanos no mundo, é um grave problema de saúde pública. Além de afetar a liberdade, a autonomia, o desenvolvimento pleno de meninas e mulheres, e a própria sobrevivência, repercute também de forma importante na saúde mental de quem sofre ou já sofreu violência (1).
Estima-se que mulheres que sofreram violência doméstica tem aumento do risco em três vezes de desenvolver transtornos depressivos, quatro vezes de desenvolver transtornos ansiosos, sete vezes de desenvolver síndrome de estresse pós-traumático. Também foram encontradas associações significativas entre sofrer violência por parceiro íntimo e abuso de substâncias, transtornos alimentares e sintomas psicóticos. Sabe-se que mulheres que experienciam mais de uma forma de violência (física, verbal, sexual, por exemplo) – sobreposição que é comum – apresentam risco ainda maior de transtornos mentais e comorbidades. Repercussões desfavoráveis na saúde mental das mulheres também foram encontradas em mulheres que sofriam violência emocional e controle coercitivo dentro do relacionamento (1).
A Organização Mundial de Saúde aponta como fatores de risco individuais para sofrer violência doméstica ser mulher, ter deficiências, pobreza, ter testemunhado violência doméstica quando criança, abuso de substâncias, entre outros. Muitos desses são também fatores de risco para desenvolvimento de transtornos mentais (1). Além de fatores individuais, uma série de fatores relacionados ao contexto comunitário e da sociedade impactam nesses riscos, como sofrer discriminação de gênero, de raça, de classe, de sexualidade (1, 2, 3). Mesmo sem categorizar por violência, mulheres apresentam uma prevalência significativamente maior de transtornos como depressão e ansiedade no mundo inteiro (4). Nesse sentido, é fundamental levar em consideração a determinação social do processo saúde-doença na abordagem do sofrimento e de transtornos mentais, que inclui desde a violência estrutural a que as mulheres estão submetidas, principalmente mulheres negras, até mesmo acesso à renda, educação, segurança, sistema de saúde e seguridade social (3). Infelizmente, tanto as políticas públicas vigentes quanto o cotidiano da prática nos serviços de saúde ainda estão distantes de integrar a abordagem da saúde mental em mulheres que sofreram violência (5, 6).
Tem se discutido que o modelo biomédico de abordagem a essas mulheres em sofrimento ou transtorno mental associado a situações de violência é bastante limitado. O risco de medicalização ao focar em estabelecer o diagnóstico e manejar os sintomas psiquiátricos pode fazer com o que o médico não realize uma escuta qualificada, não identifique a situação de violência, não faça uma avaliação do risco a que ela está submetida, e, portanto, não poderá atuar de forma a acolher esse sofrimento e planejar conjuntamente ações para prevenção de novos episódios (1, 3, 6, 7).
A abordagem dessas mulheres deve ser portanto mais ampla, dialogando com um atributo essencial da Atenção Primária à Saúde, a integralidade, e também com componentes do Método Clínico Centrado na Pessoa que incluem a exploração da experiência da mulher com aquele problema e a busca por entender a pessoa como um todo, no seu contexto (8). A longitudinalidade e o vínculo construído entre profissionais de saúde e usuários, tendo garantido o acesso dessa população aos serviços de APS, tem o potencial de identificar as situações de violência contra a mulher e suas repercussões, tanto na saúde mental da mulher quanto de sua família (6). Necessário lembrar que a abordagem da população masculina na APS também pode ser feita de forma estratégica, promovendo reflexões sobre masculinidade e reprodução de valores e comportamentos opressivos. A APS é, portanto, um espaço privilegiado para abordagem do problema de forma integral, sua prevenção, redução de agravos, fortalecimento de redes de apoio, articulação de trabalho interprofissional e intersetorial e de luta contra naturalização da violência de gênero e suas repercussões na saúde mental, na defesa dos direitos humanos e dos princípios da Reforma Psiquiátrica (3, 6, 9).
Por Giulia Rita Barbosa Scorsin – http://lattes.cnpq.br/0154969628093026
e Bruna Ballarotti – http://lattes.cnpq.br/8905324292925547
Referências:
- Oram S, Khalifeh H, Howard LM. Violence against women and mental health. Lancet Psychiatry. 2017 Feb;4(2):159-170. doi: 10.1016/S2215-0366(16)30261-9. Epub 2016 Nov 15. PMID: 27856393.
- Warner DF, Brown TH. Understanding how race/ethnicity and gender define age-trajectories of disability: an intersectionality approach. Soc Sci Med. 2011 Apr;72(8):1236-48. doi: 10.1016/j.socscimed.2011.02.034. Epub 2011 Mar 21. PMID: 21470737; PMCID: PMC3087305.
- Mota, ML. Violência contra as mulheres e saúde mental : silenciamentos e invisibilidades do sofrimento de usuárias da atenção primária à saúde em Recife. Dissertação de Mestrado em Psicologia. Recife, UFPE. 2017.
- Depression and Other Common Mental Disorders: Global Health Estimates. Geneva: World Health Organization; 2017.
- Medeiros MP, Zanello V. Relação entre a violência e a saúde mental das mulheres no Brasil: análise das políticas públicas. Rio de Janeiro, UERJ. 2018.
- Mendonça CS, Machado DF, Almeida MAS, Castanheira ERL. Violência na Atenção Primária em Saúde no Brasil: uma revisão integrativa da literatura. Ciênc. saúde coletiva [Internet]. 2020 Jun [citado 2020 Nov 08] ; 25( 6 ): 2247-2257. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232020000602247&lng=pt. Epub 03-Jun-2020. https://doi.org/10.1590/1413-81232020256.19332018.
- Trevillion K, Hughes B, Feder G, Borschmann R, Oram S, Howard LM. Disclosure of domestic violence in mental health settings: a qualitative meta-synthesis. Int Rev Psychiatry. 2014;26(4):430-444. doi:10.3109/09540261.2014.924095
- Stewart M. Medicina Centrada na Pessoa: Transformando o Método Clínico. 3a edição. Porto Alegre: Artmed; 2017.
- Organização Mundial da Saúde. INSPIRE: sete estratégias para pôr fim à violência contra crianças. Núcleo de Estudos da Violência 2018 [acesso em 01 nov 2020]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/207717/9789241565356-por.pdf?ua=1