O Brasil ultrapassou o marco de 300 mil vidas perdidas para a Covid-19, muitas das quais poderiam ter sido salvas com uma ação estratégica de combate à pandemia com devida atenção às iniquidades sócio-raciais que estruturam o país.
No Brasil o racismo é estruturante e estrutural e permeia as instituições bem como as relações interpessoais. Neste país racialmente desigual, a pandemia de Covid-19 evidencia e acentua iniquidades no acesso à saúde, nas condições de moradia e acesso a saneamento básico e nas condições de emprego e renda. Tais iniquidades contribuem para que pessoas negras, principalmente aquelas vivendo em favelas e periferias, estejam mais expostas à contaminação pelo coronavírus SARS-Cov-2, apresentem mais co-morbidades que contribuem para um maior risco de desenvolver a forma grave da doença e, por conseguinte, vivam sob o risco maior de adoecer e morrer pela doença.
Sabemos que dentre as pessoas que usam o Sistema Único de Saúde de maneira exclusiva, 80% são pessoas negras. Nesse sentido, pode-se afirmar que o subfinanciamento crônico do sistema é uma evidência do racismo estrutural no país. A distribuição de leitos de unidades de terapia intensiva, que tornam-se essenciais para o desfecho positivo de casos graves de Covid-19, é mais um dado que demonstra, por meio de sua concentração no sistema suplementar e em regiões específicas do país, o racismo institucional na saúde.
A pandemia aprofunda o abismo social e revela a lógica do racismo estrutural brasileiro. Para além da menor expectativa de vida, maior mortalidade infantil e maior mortalidade por violência, a população negra brasileira também é a que mais morre por covid-19 proporcionalmente. Segundo dados do Boletim Epidemiológico Especial 52, até a semana epidemiológica 08, 45,9% das mortes por Covid no Brasil foram de pessoas negras, contrapondo 41,5% de brancas.
O mesmo boletim chama atenção para a necessidade de uma análise interseccional de exposição e adoecimento por COVID-19, ao apresentar os dados de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e óbitos em mulheres grávidas, interseccionando opressões de gênero e raça. Gestantes negras são 49,5% dos casos de SRAG por covid-19, enquanto 39,1% são brancas e a diferença acentua-se ainda mais quando observado o número de óbitos: as mulheres negras gestantes são 56,9% desse grupo, enquanto 35,3% são mulheres brancas.
Cabe destacar que, dentre as pessoas privadas de liberdade e em situação de rua, o maior percentual é de pessoas negras. Tais grupos populacionais são historicamente negligenciados e rotineiramente destituídos de sua cidadania, o que os mantém num ciclo de vulnerabilização e exposição maior para contaminação por covid, uma vez que não são considerados grupos estratégicos ou prioritários no programa nacional de imunização. O mesmo ocorre com trabalhadores informais. A lenta velocidade de imunização e a falta de prioridade nos grupos mais vulnerabilizados a contaminação não só perpetua a cadeia de contágio, como também acentua os riscos de produção de variantes do vírus que provoca a doença.
É a população negra que tem menos acesso à vacinação, que tem menos acesso a testagens e menos acesso a serviços de saúde em geral. De acordo com dados do OpenDataSUS até 15 de março havia mais brancos do que negros vacinados em todos os grupos de faixas etárias, 3,2 milhões de pessoas brancas receberam a primeira dose de vacinas contra o coronavírus, em contraste com apenas 1,7 milhão de pessoas negras.
São os negros que sempre estiveram na informalidade no nosso país e agora sofrem as consequências econômicas da pandemia. É esse mesmo grupo populacional que mais utiliza o transporte público, em geral aglomerados, para manter seus já escassos empregos. Não são trabalhadores com opção de trabalho remoto. São as famílias negras que mais sofrem com o aumento do desemprego e a falta de suporte com políticas de proteção social e de renda.
Os critérios de vacinação em nosso país precisam levar em consideração estas iniquidades, garantindo por exemplo a imunização das trabalhadoras e trabalhadores das atividades meio nos estabelecimentos de saúde, bem como dos serviços essenciais.
A diretoria da SBMFC e o GT de Saúde da População Negra, embasadas pela Politica nacional de Saúde Integral da População Negra, promulgada em 2009 e pelo Estatuto da Igualdade Racial, promulgado em 2010, conclamam a todas as sociedades científicas e entidades profissionais da saúde à buscarem aprofundar ações e políticas promotoras de equidade sócio-racial e que se somem aos movimentos de combate a necropolítica vigente.
27 de março de 2021
Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade
Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da SBMFC
Nota sobre equidade sócio-racial_27032021