Nota de endosso às políticas afirmativas no âmbito da educação médica

4 de novembro de 2024

Ações afirmativas são definidas como “medidas que buscam compensar um passado discriminatório, ao passo em que objetivam acelerar o processo de igualdade com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos vulnerabilizados como as minorizadas coletividades étnicas e raciais e as mulheres, entre outros grupos”, de acordo com Piovesan (2005). Embora as cotas no vestibular ajudem a aumentar a representação de grupos racialmente marginalizados na educação superior, ainda existem barreiras que essas pessoas enfrentam ao entrar no mercado de trabalho, como escrito por Bento (2022). 

As ações afirmativas na graduação não garantem equidade nos níveis subsequentes de formação médica, como afirmado, sem base científica, na última nota sobre cotas nas residências médicas publicada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) no dia 30 de outubro de 2024. Nos Estados Unidos, residentes que se autodeclaram negras e negros representam a minoria, apenas 5%, mas ao mesmo tempo são proporcionalmente mais excluídas(os) dos programas (20%) (KANE, 2022).  Estudos evidenciam barreiras a pessoas pretas e pardas para a entrada e a conclusão da residência médica nas mais diversas áreas relacionadas ao racismo estrutural, à falta de representatividade e à falta de espaços seguros, o que se estende e se reproduz a outros grupos minorizados socialmente e sistematicamente vulnerabilizados, como as pessoas indígenas, quilombolas e com deficiência (AKUFFO-ADDO, 2023; SOARES, 2024; GILBERT, 2024; NGUEMENI TIAKO, 2022; RATTANI, 2024; BLANCHARD, 2020).

Conforme dados da Demografia Médica do Brasil, de um total de 1.614 médicas(os) residentes em atividade e participantes do estudo no ano de 2022, 70,1% das pessoas se declararam brancas, 24,5% pardas, 3% pretas, 1,7% amarelas, 0,6% não souberam ou não quiseram responder e 0,1% indígenas (SCHEFFER, 2023). Esses números são bastante discrepantes se comparado à população geral brasileira, em que 45,3% das pessoas se declaram pardas, 43,5% brancas, 10,2% pretas, 0,8% indígenas e 0,4% amarelas (IBGE, 2023). Também segundo dados da Demografia Médica do Brasil, o percentual de pessoas com deficiência ingressantes na graduação de medicina no programa de reserva de vagas passou de 0,7% em 2010 para 3,2% em 2019 (SCHEFFER, 2023).  Faltam dados no Brasil sobre  médicas(os) residentes com deficiência, quilombolas e indígenas.

O atendimento médico de pessoas negras, quando realizado por médicas e médicos brancos têm pior qualidade na comunicação, menor fornecimento de informação e menor participação da pessoa na consulta em comparação com pacientes brancas(os) (SHEN, 2018). A concordância racial e étnica entre médica(o) e paciente é associada a uma relação terapêutica mais efetiva e a um melhor cuidado em saúde (JETTY, 2022; JOHNSON, 2004). 

O poder socialmente atribuído ao profissional médico na produção do cuidado em saúde, dentro de um cenário de desigualdade e iniquidade racial, é conduzida e reforçada pelo racismo estrutural e institucionalizado da sociedade brasileira, que inclusive, são responsáveis pela manutenção deste mesmo racismo e dos privilégios simbólicos e materiais da branquitude (CAMPOS, 2020). 

No que diz respeito ao ingresso na residência médica, por mais que alguns programas específicos tenham adotado sistemas de reserva de vagas já há alguns anos, essa prática foi prevista como política pública a nível federal apenas a partir da resolução CNRM nº 17, de 2022, que “dispõe sobre o processo de seleção pública dos candidatos aos Programas de Residência Médica autorizados em Instituições Credenciadas pela Comissão Nacional de Residência”. Nessa resolução, a CNRM estabelece que “todos os processos seletivos de Programas de Residência Médica reservarão vagas para candidatos que se declararem negros (pretos e pardos) e pessoas com deficiência”.

A reserva de 30% das vagas do Exame Nacional de Residências (ENARE), em seu edital atual, para negros, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência, segue o previsto na resolução CNRM supracitada, além de representar um avanço pela busca por equidade no acesso a vagas de residência médica no país, servindo de inspiração para editais de outros programas de residência, que por ventura estejam caminhando ainda de forma mais tímida na construção de suas ações afirmativas internas. 

Entendemos que a inclusão de políticas de reserva de vagas para concursos públicos e  programas de residência médica representam um avanço no combate às iniquidades existentes na sociedade. Como na educação médica que lida com um contexto de categoria profissional encarada como parte da elite social, e que buscam a manutenção desse espaço de privilégio e meritrocacia, apoiados numa medicina racista e capacitista, que se afasta da realidade social, da nossa diversidade populacional e dos grupos de maior vulnerabilidades, resultando em uma prática clínica que, inadvertidamente, pode contribuir para as desigualdades estruturais. A implementação dessas políticas estabelece um continuum de ações afirmativas na formação médica, estendendo uma estratégia já presente de acesso e permanência e com resultados sabidamente positivos, a nível de graduação. A adoção de cotas é a representação de uma medicina que avança em  uma atitude antirracista, inclusiva, equânime e que busca a justiça social.

É, pois, urgente que as instituições médicas adotem, de fato, práticas de combate a essas exclusões sistemáticas não só como medida equitativa com relação a direitos historicamente negados a médicas(os) negras(os), indígenas, quilombolas e com deficiência, mas também à representatividade da própria população negra, indígena, quilombola e com deficiência, e, em última análise, como interesse de saúde pública geral.    

 

Diretoria da SBMFC

Brasília, 04 de novembro de 2024.

 

Referências

AKUFFO-ADDO, Edgar et al. Barriers to Black Medical Students and Residents Pursuing and Completing Surgical Residency in Canada: A Qualitative Analysis. Journal of the American College of Surgeons, p. 10.1097, 2023.

AGÊNCIA IBGE. Censo 2022: pela primeira vez desde 1991, a maior parte da população do Brasil se declara parda. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38719-censo-2022-pela-primeira-vez-desde-1991-a-maior-parte-da-populacao-do-brasil-se-declara-parda. Acesso em: 02/11/2024.

BRASIL. Comissão Nacional de Residência Médica. Resolução Nº 17, de 21 de dezembro de 2022, Dispõe sobre o processo de seleção pública dos candidatos aos Programas de Residência Médica autorizados em Instituições Credenciadas pela Comissão Nacional de Residência e dá outras providências.

PIOVESAN, F. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos, Cadernos de Pesquisa, 35:124, 2005

BRASIL. Lei n 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: https://bit.ly/2u5yc6E. Acesso em: 30 out. 2024.

BENTO, M. A. S. Branqueamento e branquitude no Brasil. In Psicologia Social do Racismo: Estudos sobre Branquitude e Branqueamento no Brasil. 6 ed, Petrópolis,

Vozes, 2014.

BENTO, Maria Aparecida. O pacto da branquitude . 1. edição. Editora Autêntica. São Paulo. 2022.

BLANCHARD, Anita; KOSCAL, Natalie; BURKE, Alison E. A sense of belonging. New England Journal of Medicine, v. 383, n. 15, p. 1409-1411, 2020. Disponível em: https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMp2022637. Acesso em: 02/11/2024.

CAMPOS, M S. Hoje é dia de branco: a branquitude de médicos de família de Juiz de Fora/MG e a equidade racial no cuidado em saúde.2020. 301 p. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva)- UFJF, Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, 2020.

GILBERT, Shawn R. et al. A shadow of doubt: is there implicit bias among orthopaedic surgery faculty and residents regarding race and gender?. Clinical Orthopaedics and Related Research®, v. 482, n. 7, p. 1145-1155, 2024.

JETTY, Anuradha et al. Patient-physician racial concordance associated with improved healthcare use and lower healthcare expenditures in minority populations. Journal of racial and ethnic health disparities, p. 1-14, 2022. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/S40615-020-00930-4. Acesso em: 02/11/2024.

JOHNSON, Rachel L. et al. Patient race/ethnicity and quality of patient–physician communication during medical visits. American journal of public health, v. 94, n. 12, p. 2084-2090, 2004. Disponível em: https://ajph.aphapublications.org/doi/full/10.2105/AJPH.94.12.2084. Acesso em: 02/11/2024.

KANE A. Black doctors forced out of training programs at far higher rates than white residents. STAT News. 2022. Disponível em: https://www.statnews.com/2022/06/20/black-doctors-forced-out-of-training-programs-at-far-higher-rates-than-white-residents/. Acesso em: 02/11/2024.

NGUEMENI TIAKO, Max Jordan; RAY, Victor; SOUTH, Eugenia C. Medical schools as racialized organizations: how race-neutral structures sustain racial inequality in medical education—a narrative review. Journal of general internal medicine, v. 37, n. 9, p. 2259-2266, 2022.

RATTANI, Abbas et al. A systematic review of barriers to pursuing careers in medicine among Black premedical students. Journal of the National Medical Association, 2024.

SCHEFFER, M. et al. Demografia Médica no Brasil 2023. São Paulo, SP: FMUSP, AMB, 2023. 344 p. ISBN: 978-65-00-60986-8

SOARES, Roberta et al. Experiences of racism of Black medical students and residents in Montréal:“I wear my stethoscope around my neck at all times”. Canadian Medical Education Journal, v. 15, n. 4, p. 40-49, 2024.

SHEN, Megan Johnson et al. The effects of race and racial concordance on patient-physician communication: a systematic review of the literature. Journal of racial and ethnic health disparities, v. 5, p. 117-140, 2018.