Texto número 13 da série sobre 16 dias de ativismo contra a violência relacionada ao gênero, organizada pelo Grupo de Trabalho Mulheres na MFC, com apoio de outros GTs.
“Eu tive poliomielite quando era bebê e a cadeira de rodas passou a ser as minhas pernas, possibilitando que eu circule pela capital paulista entre casa, trabalho e lazer. Apesar de ser independente, eu evito usar o transporte público sozinha. O fato de sermos deficientes nos faz mais vulneráveis e sempre tem alguém que dá um jeito de tocar o nosso corpo.
A situação mais grave aconteceu quando viajava no primeiro vagão do Metrô, indicado para Pessoas com Deficiência. Um passageiro, bêbado, se posicionou estrategicamente em frente da minha cadeira de rodas com as suas partes íntimas na altura da minha boca. Ele simulava movimentos, se esfregando na minha cadeira de rodas. Uma amiga tentou interceder e o homem se alterou, uma passageira argumentou mas foi agredida verbalmente e, então, ela desceu do trem. Na próxima estação, cinco seguranças da companhia metroviária entraram no vagão e o assediador percebeu. Os demais passageiros notaram que ele simulava a embriaguez, na verdade estava sóbrio.
Com medo, eu não quis formalizar a denúncia de assédio sexual, pois viajava todos os dias naquele mesmo horário e percurso. Prometi que se a situação se repetisse faria questão de denunciar. Naquela época eu não tinha a informação que tenho hoje, me arrependo de ter me calado.
Se para uma mulher sair na rua sozinha ou conviver com um agressor já é difícil, imagine para uma mulher com deficiência! Somos mais vulneráveis.”
Ivone de Oliveira (Gata de Rodas)
A deficiência revela a diversidade humana, assinalada de diversas formas. Não é considerada doença e não deve ser confundida com sua causa, mesmo que a causa seja uma doença. As situações e problemas de saúde que as geram podem ser visíveis ou invisíveis, estáticos ou em progressão, dolorosos ou inconsequentes. Quase todas as pessoas terão uma deficiência temporária ou permanente em algum momento de suas vidas (1) e cerca de 15% da população mundial vive com alguma deficiência, embora seja uma parcela invisível por ser sistematicamente excluída da sociedade.(2)
A concepção de deficiência não é somente médica e envolve também áreas do desenvolvimento social e de direitos humanos. É um conceito em evolução, de caráter multidimensional, que envolve elementos facilitadores das atitudes e de acessibilidade.(2) O estigma da incapacidade de pessoas com deficiência precisa ser revisto, pois é responsabilidade do meio social colocá-las em situação de menor ou maior desvantagem e não cabe somente a elas ultrapassar seus limites físicos, sensoriais e intelectuais. Políticas segregacionistas tem sido substituídas por outras que não excluam pessoas com deficiência e os serviços de saúde devem seguir a mesma lógica, caso contrário a violência institucional torna-se regra ao prestar atendimento em condições inadequadas e, assim, provocar danos físicos e psicológicos (por exemplo: longas esperas ou recusa por atendimento, intimidação e ameaças).(1) Assim como os direitos das mulheres, os direitos das pessoas com deficiência são considerados direitos humanos e foram reconhecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, embora seja possível flagrar cotidianamente violações dos direitos elementares de mulheres com deficiência, como a ausência de acessibilidade nos espaços públicos.(1)
Considerar que apenas pessoas sem deficiência são normais, que pessoas com deficiência não tem condições de decidirem e que as deficiências são situações a serem tratadas ou corrigidas são formas de capacitismo, ou seja, de preconceito e discriminação contra pessoas com deficiência. Capacitismo é considerado crime de ódio o Estatuto da Pessoa com Deficiência prevê reclusão de um a cinco anos e multa para a pessoa infratora.(3) A violência patrimonial e o abandono das pessoas com deficiência também são contempladas nessa previsão criminal. São exemplos de comportamentos capacitistas: direcionar-se somente à pessoa acompanhante da pessoa com deficiência, ao invés de dirigir-se diretamente a ela; desconsiderar as potencialidades das pessoas com deficiência, como possibilidade de trabalhar, de locomover-se ou de tomar decisões; agir como se a realização de tarefas e interações cotidianas fossem grandes atos de superação ou de heroísmo; ter pena de uma pessoa por causa de sua deficiência, ao invés de ter empatia pelas suas vivências e pela sua própria percepção de dificuldades; ou tratar uma pessoa adulta com deficiência de maneira infantilizada.
Embora a deficiência seja associada a privações, nem todas as pessoas com deficiência são igualmente desprovidas. Pessoas com deficiências intelectuais, com deficiências mais graves, com pior nível econômico ou menor status social – como aqueles associados a gênero e raça – costumam enfrentar maiores desvantagens e não ter recursos para superar as limitações e restrições para participar de certas atividades. Um exemplo de desvantagem relacionada ao gênero é o fato de que mulheres com deficiência podem ter menores chances de casar do que mulheres não-deficientes.(2)
A mulher com deficiência é antes de tudo uma pessoa, com história de vida marcada pelo gênero e por possuir deficiência, mas que experiencia e interage com muitas outras realidades de sua existência. O foco a ser observado e valorizado no seu cuidado é a sua existência como pessoa, portanto é ela quem vai gerir sua própria vida com sua real capacidade de ser agente ativo de suas escolhas, decisões e determinações, mesmo que sua deficiência física, sensorial ou intelectual imponha limites.(1)
Os cuidados específicos com as deficiências vividas podem ser direcionados ao aumento de autonomia. Uma das formas de obter autonomia e, portanto, proteção a violências é a segurança de renda, como resultado de trabalho remunerado ou através de benefício via seguridade social.(4) Apesar da previsão legal, o mercado de trabalho ainda exclui pessoas com deficiências e mecanismos de cotas oferecem vagas escassas, o que perpetua a violência estrutural, ou seja, gera privilégios e formas de dominação favoráveis às pessoas sem deficiência.(5)
O tipo mais comum de violência vivida por pessoas com deficiência é a psicológica,(6) caracterizada por causar dano emocional, diminuição da auto-estima, perturbação do pleno desenvolvimento ou controle de ações/ comportamentos/ crenças/ decisões, através de atos de constrangimento, humilhação, chantagem, ameaça, isolamento, violação da intimidade, vigilância constante ou limitação do direito de ir e vir.(7) É um problema social grave, frequentemente desconsiderado pelos serviços de saúde e de segurança pública. (5)
Algumas ações realizadas por serviços de saúde também são violentas, como a exclusão dos programas de saúde sexual (4) e até mesmo esterilização forçada, praticada contra mulheres com deficiência ao longo da história.(1) A atenção à saúde sexual e reprodutiva é um direito das pessoas com deficiência, que inclui reprodução assistida e parto humanizado. A gestação não deve ser entendida como fruto de violência simplesmente por a mulher viver com deficiência. A legislação brasileira considera que deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa para: “casar-se e constituir união estável; exercer direitos sexuais e reprodutivos; exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”.(4)
A sexualidade de pessoas com deficiência é invisibilizada e, consequentemente, também é invisibilizada a violência sexual,(8) perpetrada principalmente por familiares e na casa da vítima.(6) Não costuma haver espaço para diálogo sobre sexualidade dentro da família, situação que vulnerabiliza ainda mais as pessoas que possuem deficiência desde infância ou são dependentes de cuidados familiares. Para oferecer segurança às violências possíveis relacionadas à prática sexual é importante ofertar diálogo sobre sexualidade e informações qualificadas, com abordagem de comunicação sobre consentimento, reconhecimento de violência e canais de denúncia ou suporte (como Disque 100 ou Disque 180). Pessoas com baixa autonomia podem precisar de apoio quando desejam ser expostas de maneira positiva a atos sexuais, sejam eles masturbação ou prática penetrativa, o que não necessariamente configura violência. Em alguns países existem profissões regulamentadas, como assistentes sexuais, que recebem capacitação para desenvolver terapia ou reabilitação sexual, ao acompanhar e guiar pessoas adultas ou casais com deficiência de forma sexual, afetiva ou erótica. No Brasil, é comum que pessoas com deficiência tenham contato com profissionais do sexo.(9)
Métodos anticoncepcionais podem ser desejados pela mulher com deficiência e por sua família, tanto pela contracepção quanto pelo efeito secundário da amenorréia visando conforto e facilidade de higiene, porém sua demanda pode ser motivada pela intenção de reduzir libido contra a vontade da mulher ou para acobertar violência sexual.
Mulheres com deficiência sofrem mais violência física e sexual do que homens com deficiência.(10) (6) A violência sexual é mais frequente em mulheres com deficiência, que correm 3 vezes mais o risco de serem estupradas do que mulheres sem deficiência por serem alvos fáceis, devido ao oportunismo em relação à sua vulnerabilidade física, às necessidades de cuidados específicos e à falta de credibilidade social de seu julgamento dos fatos e de seu relato.(1)
Mulheres com deficiências físicas sofrem com dificuldade para escapar da violência e para chegar à delegacia para realizar denúncia. Mulheres com deficiência intelectual podem ter dificuldade para perceber a violência e para oferecer consentimento, além de dificuldade em pedir ajuda ou gritar por socorro. A violência sexual é a mais notificada em mulheres com deficiência (10) (6) e estima-se que o abuso sexual a jovens com alguma deficiência intelectual chegue a 70% em algumas regiões.(1) Mulheres com deficiência sensorial podem ter dificuldade em antever a violência, além disso a deficiência visual pode fazer com que a mulher não perceba quem perpetra a violência e não consiga se defender por não se antecipar aos golpes físicos. Mulheres com deficiência auditiva são mais vulneráveis se não conseguem dialogar com sua rede de suporte e têm sua autonomia negada quando não é oferecida comunicação em libras para realização de denúncia.
Muitas vezes a violência contra mulheres com deficiência é encarada isoladamente como violência de gênero ou violência contra pessoa com deficiência. Apenas em 2019 os boletins de ocorrência de violência contra a mulher passaram a ter informação sobre a existência de deficiência antes ou em resultado da violência (11). Apesar de haver algumas delegacias específicas para pessoas com deficiência, as delegacias de defesa das mulheres continuam a ser referência para registro de ocorrência e denúncia, e portanto não podem excluir a população com deficiência.
Mulheres com deficiência têm maiores dificuldades de denunciar violências sofridas, principalmente quando vivenciam dificuldades de acessibilidade, de comunicação e quando não possuem rede de suporte. O medo de denunciar pode envolver, além do medo de represália do agressor e de negligência do sistema de segurança pública, uma insegurança quanto à sua manutenção cotidiana, principalmente quando a violência é perpetrada por uma pessoa cuidadora. Soma-se ao medo a realidade de abrigamentos serem escassos e dificilmente possuírem adaptação e cuidadores para pessoas com deficiência. Violentadores pais, padrastos, maridos/companheiros, irmãos e vizinhos que frequentam a casa sentem-se confortáveis com esse fundado receio e continuam praticando crimes sexuais, seguros de que jamais serão descobertos e punidos.(8)
As políticas públicas são propostas e acompanhadas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE) (12) e alguns municípios e estados possuem conselhos regionais, que não atuam no acompanhamento dos casos de violência denunciados. No entanto, a presença e as demandas de mulheres nem sempre são acolhidas nesses órgãos de controle social, pois esses espaços não são livres de outras opressões que maltratam mulheres (como machismo, racismo, LGBTIfobia, etarismo, classismo e gordofobia). O enfrentamento e o cuidado às mulheres com deficiência vítimas de violência devem envolver preferencialmente uma rede interprofissional e interinstitucional, que inclua áreas da saúde, educação, assistência social, segurança pública, moradia, transporte e outras esferas do bem estar social.
Por Ana Paula Andreotti Amorim (http://lattes.cnpq.br/9681322712322938)
e Ivone Gomes de Oliveira
Referências:
(1) Resende APC, Vital FMP. A Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência comentada. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Coordenadoria Nacional para Integração da pessoa Portadora com Deficiência, 2008. 164 p. https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/orgaos-colegiados/conade/ConvenoDireitosPessoasDeficinciaComentada.pdf
(2) World Health Organization, The World Bank. Relatório Mundial sobre a Deficiência. tradução Lexicus Serviços Lingüísticos. – São Paulo : SEDPcD, 2012. 334 p. Título original: World report on disability, 2011, ISBN 978-85-64047-02-0 https://www.mobilizadores.org.br/wp-content/uploads/2015/03/Relatorio-Mundial-sobre-a-Deficiencia.pdf
(3) Brasil, Presidência da República. Lei nº 13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
(4) Brasil, Senado Federal. Estatuto da pessoa com deficiência. Coordenação de Edições Técnicas do Senado Federal, 2015. 65 p.
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/513623/001042393.pdf
(5) Coelho EBS, Silva ACLG, Lindner SR. Violência: definições e tipologias. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Ciências da Saúde. Curso Atenção a Homens e Mulheres em Situação de Violência por Parceiros Íntimos – Modalidade a Distância. Florianópolis : Universidade Federal de Santa Catarina, 2014. 32 p. ISBN: 978-85-8267-038-5 https://ares.unasus.gov.br/acervo/html/ARES/1862/1/Definicoes_Tipologias.pdf
(6) Brasil. Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Disque Direitos Humanos – Relatório 2019. https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/junho/balanco-anual-disque-100-atendeu-2-7-milhoes-de-ligacoes-em-2019/copy_of_Relatorio_Disque_100_final.pdf
(7) Brasil, Presidencia da Republica. Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
(8) Prates D. Da violência sexual contra mulheres com deficiência: a invisibilidade. Justificando – mentes inquietas pensam direito. 15 de novembro de 2020. Internet. http://www.justificando.com/2017/12/06/da-violencia-sexual-contra-mulheres-com-deficiencia-invisibilidade/
(9) Mendes LSF. Sexualidade da Pessoa com Deficiência: aspectos sociais. Apresentação de monografia à Universidade Cândido Mendes / AVM como requisito parcial para obtenção do grau de especialista em Saúde da Família. Rio de Janeiro, 2017.
(10) Observatório Municipal da Política da Pessoa com Deficiência. Violência cometida contra pessoas com deficiência: município de São Paulo (2014-2018). Internet. https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/Dados%20viol%C3%AAncia%20PCD(1).pdf
(11) Brasil, Presidência da República. Lei nº 13.836/2019 – torna obrigatória a informação sobre a condição de pessoa com deficiência da mulher vítima de agressão doméstica ou familiar. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13836.htm
(12) Brasil, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Internet. Publicado em 08/05/2018 e atualizado em 08/06/2020. https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/orgaos-colegiados/conade/conselho-nacional-dos-direitos-da-pessoa-com-deficiencia-conade