As(os) médicas(os) de família e comunidade (MFCs) têm mesmo um olhar mais atento para os pacientes? Acompanham a população de maneira mais próxima? Transformam positivamente os sistemas de saúde, otimizando processos e poupando recursos? Em entrevista para a SBMFC, o MFC e pesquisador Adelson Guaraci Jantsch responde a essas e outras perguntas ao apresentar os resultados de quatro artigos derivados de sua tese de doutorado entitulada “The impact of residency training in family medicine in promoting the attributes of primary care in Rio de Janeiro”.
Graduado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2003, concluiu a residência em Medicina de Família e Comunidade pelo Grupo Hospitalar Conceição (GHC) em 2005; o mestrado em Saúde Coletiva – Epidemiologia pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ); e o doutorado em Saúde Coletiva – Epidemiologia pela mesma instituição em 2020.
Em seu trabalho, Jantsch oferece uma visão única dos efeitos da formação em Medicina de Família e Comunidade e aponta para futuras direções de pesquisa e aprimoramento da especialidade e da atenção primária à saúde no país ao discorrer sobre a repercussão dos dois anos de formação em MFC no cuidado dos pacientes. Ele examina diversos aspectos presentes na rotina de trabalho de médicos de família, desde a capacidade de diagnosticar problemas de saúde, passando pela redução de encaminhamento de pacientes aos demais níveis de atenção e à redução de internações hospitalares.
Durante a conversa, o médico destaca ainda a necessidade de investigações mais aprofundadas sobre o efeito educacional das metodologias de ensino em uso atualmente e levanta questões cruciais sobre a sustentabilidade dos efeitos observados ao longo do tempo, a adaptação do modelo de treinamento para diferentes realidades brasileiras e a possibilidade de aumentar ou diminuir o tempo da formação profissional. Confira.
Quais são e o que abordam os artigos que compõem sua tese de doutorado?
São quatro artigos, no total: “Pesquisa científica, atenção primária e medicina de família: três ingredientes indispensáveis para a melhoria da qualidade do cuidado em saúde”; “Detection and follow-up of chronic health conditions in Rio de Janeiro – the impact of residency training in family medicine”; “Residency training in family medicine and its impact on coordination and continuity of care: an analysis of referrals to secondary care in Rio de Janeiro”; e “The impact of residency training in family medicine on hospital admissions due to Ambulatory-care Sensitive Conditions in Rio de Janeiro”. Eles abarcam uma série de estudos empíricos que fiz buscando responder a uma pergunta importante aqui no Brasil e em outros países que tem uma Atenção Primária à Saúde (APS) ainda em desenvolvimento: que diferença fazem, para o cuidado dos pacientes, dois anos de treinamento em Medicina de Família e Comunidade no formato de residência médica? Essa pergunta sobre a “terminalidade da graduação de medicina” ainda presiste em vários países, especialmente no Brasil. Alguns argumentam que seis anos de graduação em Medicina seria suficiente para ser um médico competente para atuar na APS. Médicos de família, por outro lado, argumentam que é necessário um treinamento abrangente e profundo para lidar com as complexidades clínicas, relacionais e profissionais que a APS demanda. A falta de evidências científicas capazes de responder a esta pergunta foi o que me motivou a fazer deste tema minha tese de doutorado.
O primeiro artigo, “Pesquisa científica, atenção primária e medicina de família: três ingredientes indispensáveis para a melhoria da qualidade do cuidado em saúde”, é um ensaio?
Sim, é um ensaio apresentando uma argumentação sobre a falta de evidências mostrando que a residência em MFC realmente qualifica o cuidado dos pacientes na APS e defendendo que essa pergunta central precisa ser mais estudada de forma mais abrangente. Por vivência prática nós, médicos de família e comunidade, sabemos que os dois anos de residência médica fazem muita diferença no cuidado prestado aos pacientes, mas demonstrar esse efeito ainda não havia sido feito. Além disso, precisamos estudar melhor quais aspectos do cuidado prestado realmente melhoram, como melhoram, por que, para quem e por quanto tempo este efeito pode ser encontrado. Se, por um lado, a residência torna o trabalho do médico mais eficaz; por outro, o torna também mais complexo e abrangente. Sua capacidade de responder às demandas de cuidado que surgem aumentará, tornando seu trabalho complexo.
E quanto aos outros três artigos?
Os outros são estudos empíricos quantitativos, que têm um tipo de desenho chamado de “quase-experimento” e que usam dados do mundo real, como dados de prontuários de pacientes, dados de encaminhamentos às especialidades e dados de internações hospitalares, como fonte de informação.
Em que consiste um quase-experimento?
Os quase-experimentos são estudos que estimam o impacto causal de uma intervenção na população estudada, sem atribuição aleatória. Seria diferente se eu fizesse um experimento no qual seleciono uma população para receber uma intervenção e outra população para receber um controle (ou não receber a intervenção). Neste caso, aconteceu, por acaso, que uma população teve um tratamento (foi atendida por médicos de família), outra população teve outro (foi atendida por médicos sem formação em MFC), e depois verificamos o que ocorreu com as duas.
Como foram desenvolvidos esses estudos?
Esses três estudos comparam populações que foram atendidas por médicos de família com populações que foram atendidas por médicos sem treinamento em medicina de família – o cenário mais comum no Brasil. Grupos, portanto, que receberam tratamentos distintos. Se pensarmos em termos de vacinas ou remédios, seriam populações que receberam vacinas ou remédios diversos.
O que foi observado neles?
Quando há uma população exposta a médicos de família, ela tem maior probabilidade de ser diagnosticada para praticamente todas as condições crônicas, seguindo com critérios diagnósticos mais rígidos. No caso dos problemas de saúde mental, como psicose e esquizofrenia, e de dependências químicas, como alcoolismo e drogadição, médicos de família diagnosticam mais. Isso é algo muito importante, pois são condições de saúde comumente negligenciadas. São problemas que muitos médicos têm muita dificuldade de enxergar, mas que os médicos de família, pelo treinamento recebido, tornam-se mais sensíveis para identificar e diagnosticar. Eles acabam abrindo mais os olhos para esses problemas, enxergando melhor, correndo atrás. E fazem tudo isso ao mesmo tempo em que solicitam menos exames complementares, menos exames laboratoriais, menos radiografias, menos tomografias, menos ressonâncias magnéticas. Isto é uma quebra de paradigma, principalmente se considerarmos um dos grandes problemas na formação médica hoje: aprendemos a lidar melhor com máquinas do que com pessoas. Estamos mais à vontade escrutinando resultados de exames laboratoriais ou de imagem do que examinando e entrevistando o paciente em busca do seu diagnóstico e sobre como ele lida com seu problema de saúde. Exames complementares são, é claro, necessários; no entanto, são complementares à entrevista, à anamnese, ao exame físico. Se o profissional não consegue entrevistar com eficiência, se não sabe bem o que está procurando, acaba solicitando muito mais exames complementares que não deveriam ser solicitados. Os médicos de família são mais parcimoniosos do que seus colegas que não passaram pela residência. Além disso, acompanham os pacientes de maneira continuada. Concluindo os achados deste primeiro estudo, constatamos que médicos de família se tornam mais capazes de identificar problemas de saúde e, ao mesmo tempo, solicitar menos exames complementares, ao passo que realizam mais consultas de seguimento com seus pacientes. Detectam mais, solicitam menos exames e encontram seus pacientes com maior frequência em consultas de seguimento. Aprendem a suspeitar que algo errado pode estar acontecendo com o paciente sem que ele o diga, identificando melhor quem pertence à população de risco de determinada doença e ofertando a realização de testes sem depender de um pedido direto dos pacientes. No caso do HIV, eles detectam 15% mais soropositivos do que os médicos que não têm treinamento em medicina de família, apesar da disponibilidade dos mesmos recurso e insumos no centro de saúde onde atuam.
Pode falar sobre o segundo estudo empírico?
Em “Residency training in family medicine and its impact on coordination and continuity of care: an analysis of referrals to secondary care in Rio de Janeiro”, verifiquei que o treinamento em medicina de família e comunidade diminui consideravelmente os encaminhamentos ao nível secundário para uma série de especialidades eminentemente clínicas. Isso graças à maior capacidade de resposta aos problemas clínicos. Ou seja, todos aqueles problemas de saúde que dependem eminentemente de conhecimento clínico para serem manejados. Já para questões cirúrgicas ou que demandam procedimentos que envolvem alguma máquina ou algum tipo de terapêutica mais específica, o médico de família faz o contrário, encaminha mais. Por exemplo, cirurgia de catarata. Médicos de família acabam encaminhando mais pacientes para cirurgia de catarata porque olham para o paciente, desconfiam do problema, examinam, encontram a doença e sabem para quem caminhar. Isso resulta em melhor qualidade de vida para o paciente, pois faz um bom uso do recurso disponível.
Da mesma forma que no estudo anterior, também analisamos a ocorrência de consultas de seguimento aos pacientes encaminhados ao nível secundário. Para todas as especialidades analisadas, sempre que médicos de família solicitam uma consulta com outro especialista, também realizam mais consultas de seguimento com este paciente, ao contrário dos médicos sem treinamento em MFC. Em resumo, quando médicos de família encaminham o paciente, o fazem como recurso de apoio, não como transferência de responsabilidade de cuidado. Isso é prova da quebra daquele famoso paradigma do médico da APS como o “médico Au Au: ao cardiologista, ao pneumologista, ao ortopedista”.
E em “The impact of residency training in family medicine on hospital admissions due to Ambulatory-care Sensitive Conditions in Rio de Janeiro”?
No último artigo, abordei hospitalizações comparando três quadros: médico de família e comunidade com dois anos de treinamento; médico generalista sem treinamento; e situações em que há paciente sem médico algum. Quando a pessoa não possui médico a acompanhando, a chance de internação é alta; quando tem um médico generalista, essa chance diminui; e quando existe ao seu lado um médico de família e comunidade, o risco de internação decresce muito mais. Além disso, para a maioria das condições analisadas, médicos de família realizam muito mais consultas de seguimento após alta hospitalar do que médicos sem residência em MFC. Neste artigo analisamos condições crônicas, como diabetes mellitus, infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral, e doenças agudas, como diarréia aguda e pneumonias em crianças e adultos. Em todas elas, pacientes acompanhados por médicos de família tiveram menor risco de internação.
O que é importante abordar em pesquisas futuras?
Em primeiro lugar, ressalto que uma tese de doutorado é um recorte da realidade, e o recorte que fiz é quantitativo, pois se tratava de um doutorado em epidemiologia. Medi apenas algumas ações feitas pelos médicos todos os dias, como diagnósticos, solicitação de exames complementares, consultas de seguimento e encaminhamento dos pacientes para o nível secundário. Entretanto, essas são apenas algumas ações. Inúmeras outras não foram contempladas, naturalmente.
Para o futuro, creio que seja importante prestarmos atenção a três pontos, se quisermos avançar em estudos focados na formação de recursos humanos para a saúde, seja em medicina de família ou em qualquer outra especialidade ou profissão. O primeiro diz respeito ao efeito das metodologias educacionais em uso atualmente nos programas de residência em medicina de família e comunidade. Precisamos entender melhor como diferentes metodologias podem ser usadas para desenvolver as competências necessárias para o trabalho, descobrir metodologias que melhor facilitem o desenvolvimento de competências e como colocar em prática estas metodologias. Hoje, no Brasil, dada a proporção que a formação desses profissionais vem tomando, não podemos resumir a ideia de formação em medicina de família e comunidade para tão somente “dois anos de residência médica”. Como é feio o treinamento, que experiências devem ser vividas, que atividades educacionais devem ser aplicadas? Tudo isso precisa ser melhor aprofundado, ainda mais agora que atividades online síncronas se tornaram uma rotina nas nossas vidas. O segundo ponto se relaciona com o efeito de longo prazo do treinamento recebido durante a residência. Por quanto tempo ele perdura? E se o médico não receber qualquer tipo de treinamento ou capacitação após os dois anos de residência, continuará trabalhando da mesma forma? Sua capacidade de responder aos problemas será a mesma, ou melhorará com o tempo? Da mesma forma que eu não acredito que a formação médica de seis anos é terminal, também não acredito que dois anos de residência em MFC seja terminal para se trabalhar como médico em um campo difícil e extenuante que é a APS. Essa é uma questão que afeta diretamente a motivação para o trabalho e a fixação no cenário de prática. Por fim, no terceiro ponto, é oportuno estudarmos a duração dos nossos programas de residência. Aumentá-lo de dois para três anos implica em fazer crescer também a qualidade da formação? E diminuí-lo, no caso das zonas mais remotas do país? Não seria uma solução conveniente para lidar com as dificuldades de provimento que assombram o Brasil? Relembrando o que escrevi no primeiro artigo, não faltam boas perguntas a serem estudadas no cenário brasileiro contemporâneo, se quisermos melhorar a qualidade do cuidado prestado aos pacientes na APS.
Acesse os artigos de Adelson Guaraci Jantsch:
- Pesquisa científica, atenção primária e medicina de família: três ingredientes indispensáveis para a melhoria da qualidade do cuidado em saúde – rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/2466
- Detection and follow-up of chronic health conditions in Rio de Janeiro – the impact of residency training in family medicine – bmcprimcare.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12875-021-01542-5
- Residency training in family medicine and its impact on coordination and continuity of care: an analysis of referrals to secondary care in Rio de Janeiro – bmjopen.bmj.com/content/12/2/e051515.long
- The impact of residency training in family medicine on hospital admissions due to Ambulatory-care Sensitive Conditions in Rio de Janeiro – journals.plos.org/globalpublichealth/article?id=10.1371/journal.pgph.0000547