No Dia Nacional da Visibilidade Trans, Grupo de Trabalho da SBMFC reforça a importância da forma como são dispensados o atendimento e cuidado às pessoas trans ou em fase de transexualização
Uma das principais barreiras de acesso dos usuários transgênero ao sistema de saúde ocorre pelo constrangimento na forma como são acolhidos nos serviços (1). O nome de registro reflete o sexo biológico designado ao nascer e muitas vezes contrasta com a identidade de gênero autodeterminada pelo indivíduo. Para alertar sobre a importância da forma como se é dispensado o atendimento e cuidado com as pessoas trans ou em fase de transexualização, o Grupo de Trabalho de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da SBMFC orienta sobre como proceder com essa população.
“Uma das formas de demonstrar sensibilidade e oferecer apoio é perguntando ao usuário como ele gostaria de ser chamado. Quando a escolha for o nome social, o mesmo deverá ser adotado tanto no trato direto pelos profissionais de saúde quanto nos documentos da unidade, tais como prontuário, receituários e cartão do SUS. Ainda, deverá ser orientada a possibilidade legal de mudança de nome nos documentos de identificação, independentemente de qualquer transição corporal.”, explica Jéssica Iaci, Médica de Família e Comunidade e membro do GT.
O processo transexualizador deve ser entendido não apenas como uma transição do corpo biológico, mas também do corpo social. O que significa que aquela existência que não se encaixa no corpo designado de forma social (e por vezes resumida ao sexo biológico) está em contradição e ela precisa se expressar não somente na mudança do corpo, mas também, e especialmente, na mudança das relações sociais, com a família, com instituições, com o empregador etc.
Papel do Médico de Família e Comunidade
O papel do médico de família é essencial na escuta do usuário, conhecendo os fatos determinantes em sua vida desde a infância, sua trajetória pelo sistema educacional, laboral, relações familiares e sociais e a idade em que começou a se identificar com determinado gênero.
Jéssica reforça que os anseios pelas mudanças corporais devem ser considerados, pois podem provocar sofrimento psíquico, automutilação e suicídio, não devendo-se atrasar o início e acompanhamento da terapia hormonal quando houver tal demanda. “No processo de transição corporal, é necessário orientar e prescrever a terapia hormonal de forma segura, seguindo os protocolos para a Atenção Primária já existentes (2),(3),(4), (5). É importante que o profissional de saúde conheça os principais recursos utilizados por esta população e oriente sobre os riscos do uso de silicone industrial, além das práticas de binding e tucking. Ainda, deve-se encaminhar para atenção especializada em situações mais complexas onde não puder iniciar a hormonização ou houver demanda cirúrgica”.
Vale a pena lembrar que a população não apenas tem demandas relacionadas à sexualidade e gênero, mas também precisa discutir outros problemas de saúde comuns e prevalentes, tais como hipertensão, diabetes, obesidade, tabagismo, dor crônica, dentre outros.
As mudanças corporais são um anseio que podem levar a uma tentativa de ocultar o sexo imposto ao nascer e aproximar-se das características sociais do gênero autodeterminado, conhecido como passabilidade (6). “No entanto, dentro de uma sociedade transfóbica, elas também podem significar uma estratégia de sobrevivência na medida em que tentam disfarçar a identidade trans, além de buscar aceitação social. A falta de acompanhamento médico pela dificuldade de acesso ao sistema, aliado ao despreparo dos profissionais, podem levar indivíduos a usar recursos para mudanças corporais rápidas, baratas, porém danosas à saúde (7). A exemplo disso estão o uso de silicone industrial, técnica proibida e utilizada por indivíduos não médicos que pode levar a danos irreversíveis, tais como necrose tecidual, embolia pulmonar e morte. Outras medidas como uso de hormônios sem supervisão médica podem levar ao uso em doses mais altas que não necessariamente vão acelerar as mudanças corporais, além de poderem aumentar o risco cardiovascular, provocar intoxicações agudas e hepatotoxicidade”.
Política Nacional de Saúde LGBT
O Brasil é o primeiro país no ranking de homicídios da população transgênero (8), o que já representa um grave problema de saúde pública. A expectativa média de um indivíduo trans é de 35 anos (9), menos da metade esperada para a população geral, que era de 76 anos em 2017, segundo o IBGE (10). A maioria dos dados nacionais é reunida com a colaboração de ONG’s e pesquisadores, no entanto faltam dados sobre a saúde da população transgênero através de fontes a nível governamental ou institucional, o que poderia ajudar a organizar estratégias em saúde com foco nas questões mais prevalentes.
Tais informações podem incluir desde dados socioeconômicos até incidência e prevalência de agravos comuns e/ou específicos para a população trans. Alguns exemplos: evasão escolar, ocupação, população em situação de rua, violência sob qualquer forma, IST’s, transtornos mentais, uso de álcool e drogas, problemas específicos cirúrgicos e não cirúrgicos relacionados a transição corporal, além de rastreamentos de doenças oncológicas e prevalência de doenças cardiovasculares. Alguns países já contam com centros de pesquisa sobre a saúde transgênero que promovem investigações e auxiliam na elaboração de protocolos para melhoria do cuidado, dentre eles os Estados Unidos (2), Canadá (3) e Uruguai (4).
“A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) (11), instituída pela Portaria no 2.836 de 2011 do Ministério da Saúde, define, dentre outros objetivos, oferecer atenção integral na rede do SUS para a população LGBT, combater o preconceito e discriminação nos serviços de saúde, fortalecer a participação social nos Conselhos e Conferências de Saúde e realizar estudos e pesquisas para o desenvolvimento de serviços e tecnologias voltados às necessidades da população LGBT”, ressalta a médica que atua na Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.
Em 2013, o Ministério da Saúde institui uma nova portaria de Nº 2.803 (12), que “Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS)”, e coloca como diretrizes: a integralidade no cuidado da população trans, o trabalho multiprofissional e o papel da Atenção Primária como porta de entrada no sistema.
É interessante observar cronologicamente o avanço na organização de estratégias para o cuidado à população transgênero no Brasil, que se iniciou em ambiente hospitalar e focado nos processos de modificação corporal com viés patologizante, e passou para um olhar humanizado e voltado para aspectos psicológicos, sociais e também de saúde, em todos os níveis de atenção.
A transsexualdiade não é uma síndrome, transtorno ou doença. O termo “transsexualismo” já foi abandonado pela nova Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-11) (13), sendo retirado do capítulo associado a transtornos mentais. Desta forma, é relevante despatologizar a transsexualidade tanto para o usuário, familiares, profissionais de saúde e sociedade, tendo em vista que os transtornos psiquiátricos associados a esta população não têm relação direta com a identidade de gênero. No entanto, são secundários a rejeição, assédio, discriminação e isolamento provocado pela má interpretação a nível social e familiar do processo de expressão de gênero ou da orientação sexual, além de estarem mais suscetíveis a abusos emocionais, verbais e físicos. Sendo assim, observa-se uma maior prevalência de transtornos mentais como estresse pós-traumático, ansiedade, depressão e suicídio, superiores a média geral (14), (15). Deve-se, portanto, identificar o sofrimento psíquico e os fatores que contribuíram para ele, verificando a existência de uma rede de apoio, seja ela familiar, institucional ou social, e a necessidade de se abordar de forma multiprofissional.
REFERÊNCIAS:
1. ROCON, P; RODRIGUEZ, A; ZAMBONI, J; PEDRINI, M. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva. 21(8):2517-2525, 2016
2. DEUTSCH, M.B. (Coord.). Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People, Center of Excellence for Transgender Health. UCSF, Second Edition, Published June 17, 2016, Disponível em <http://transhealth.ucsf.edu/protocols> Acesso em 26 janeiro 2019
3. BOURNS, A. Guidelines and Protocols for Hormone Therapy and Primary Health Care for Trans Clients. Rainbow Health Ontario. First Edition. 200
4. URUGUAY. Ministerio de Salud Pública. Salud y Diversidad Sexual – Guía para Profesionales de la Salud. Montevidéu. 2015
5. GUSSO, G.; LOPES, J.M.C. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: princípios, formação e prática. – 2. ed. – Porto Alegre: Artmed, 2019
6. FERREIRA, S. F. S. O Direito ao manejo dos próprios dados, a autodeterminação e a passabilidade trans: diálogos a partir de um relato. In: Anais do Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades, V. 1, 2017, Salvador, BA. Anais (online). Salvador: Editora Realize, 2017. ISSN 2238-9008. Disponível em: <http://www.editorarealize.com.br/revistas/enlacando/trabalhos/TRABALHO_EV072_MD1_SA36_ID649_16062017182251.pdf> Acesso em 26 janeiro 2019
7. PERES, W.; TOLEDO, L.; Perez, W. Dissidências existenciais de gênero: resistências e enfrentamentos ao biopoder. Rev. psicol. polít. vol.11 no.22 São Paulo dez. 2011
8. TRANSGENDER EUROPE. Trans Murder Monitoring Absolute numbers. Disponível em: <https://transrespect.org/en/map/trans-murder-monitoring/> Acesso em 26 janeiro 2019
9. ANTUNES, Pedro Paulo Sammarco. Travestis envelhecem? Dissertação de Mestrado em Gerontologia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 201
10. Agência IBGE Notícias. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23200-em-2017-expectativa-de-vida-era-de-76-anos> Acesso em 26 janeiro 2019
11. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT. Brasília, DF, 2010
12. Ministério da Saúde. Portaria 2.803, de 19 de novembro de 2013. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html> , Acesso em 26 janeiro 2019
13. World Health Organization. International Classification of Diseases. ICD-11. Disponível em: <https://www.who.int/classifications/icd/en/> Acesso em 26 janeiro 2019
14. VEALE, J. F.; RyaN J. WATSON; PETER, T.; SAEWYC, E.M.The mental health of Canadian transgender youth compared with the Canadian population. J Adolesc Health. 2017 Jan; 60(1): 44–49.
15. VIRUPARSHA, H. G.; MURALIDHAR, D.; RAMAKRISHNA, J. Suicide and Suicidal Behavior among Transgender Persons. Indian J Psychol Med. 2016 Nov-Dec; 38(6): 505–509
Jéssica Iaci Cruz de Andrade