Nota da SBMFC sobre a resolução do CFM nº 2.427, de 08 de abril de 2025

17 de abril de 2025

Foi publicada, em 16 de abril de 2025, a Resolução pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 2.427, de 08 de abril de 2025, que modifica critérios para a realização de bloqueio puberal, hormonização cruzada e cirurgias como estratégia individual de afirmação de gênero por pessoas trans. A resolução, que mesmo antes de sua publicação tem mobilizado instituições e movimentos sociais ligados à defesa da saúde e dos direitos de pessoas trans, apresenta importantes inconsistências com as melhores e mais atuais evidências científicas, assim como ignora a diversidade de cuidados em saúde oferecidos por diferentes especialidades médicas e por diversas categorias profissionais. Essa resolução é publicada pelo CFM em um momento de vazio propositivo do Ministério da Saúde (MS), com o atraso da publicação do Programa de Atenção Especializada à Saúde de Pessoas Trans (PAES Pop Trans), uma importante atualização construída a partir da participação de pesquisadores, instituições e sociedade civil, da vigente Portaria do Processo Transexualizador nº 2.803/2013.

Nesse contexto, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), por meio de seu Grupo de Trabalho em Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos, elaborou essa nota que objetiva contribuir, a partir de referencial científico, para a discussão acerca da oferta do cuidado em saúde da população trans em todos os seus ciclos de vida, bem como salientar o papel da Medicina de Família e Comunidade (MFC) e da Atenção Primária à Saúde (APS) na garantia do cuidado integral, geral e específico, a essa população.

A Medicina de Família e Comunidade (MFC) e a Atenção Primária à Saúde (APS) ocupam lugar central na garantia do cuidado integral, longitudinal e centrado na pessoa – princípios fundamentais para a atenção à saúde da população trans (Lima et al., 2019; Vieira et al. 2019; Okano, 2022). A APS, por ser a porta de entrada preferencial do sistema de saúde e articular o cuidado em rede, é estratégica tanto para o acompanhamento geral em saúde quanto para ações específicas, como o início e o seguimento dos processos de transformação corporal, incluindo a hormonização.

Publicações nacionais e internacionais destacam que o acesso qualificado à APS tem o potencial de melhorar desfechos em saúde, identificar agravos em tempo oportuno e reduzir as barreiras institucionais e simbólicas que historicamente marcam a exclusão dessa população do cuidado. Além disso, equipes de APS capacitadas são capazes de manejar o cuidado hormonal com segurança, promover acolhimento e realizar encaminhamentos quando necessário, sem que isso implique na fragmentação do cuidado (Crouwley, Cullen, Van Hout, 2021). No Brasil são principalmente utilizadas duas referências baseadas em diretrizes internacionais para o cuidado de pessoas trans que orientam o acompanhamento da hormonização na APS: o documento publicado em 2023 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pelo TelessaúdeRS-UFRGS (respaldado também pelo Ministério da Saúde), “Telecondutas: atendimento às pessoas transexuais e travestis na Atenção Primária à Saúde” e o documento que se encontra em sua segunda edição, publicado pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, “Protocolo para o cuidado integral à saúde de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero no município de São Paulo” (Martins et al., 2023; Amorim et al., 2023). 

Vale ressaltar que restringir a hormonização de pessoas trans a  uma relação arbitrariamente definida de  especialidades médicas, fere o próprio código de ética médica em seu capítulo 5, artigo 33, no qual consta que “o médico pode usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, desde que cientificamente reconhecidos e aprovados no país”. Segundo a Lei do Ato Médico, nº 12.842/2013, se evidencia que a prática da medicina não pode ser limitada por procedimentos específicos, desde que tenha a capacitação, competência e expertise adequadas. Também segundo a resolução do CFM nº 1.982/2012, que versa sobre uso de tratamentos não convencionais, médicas e médicos podem empregar qualquer tratamento legalmente admitido no país, desde que baseado em evidências e com o consentimento de paciente.

Diversas iniciativas de serviços voltados ao acesso à saúde de pessoas trans nas quais há participação ativa de médicos e médicas de família e comunidade tem se estabelecido no país nos últimos 15 anos (Lucena et al. 2022; Rogers et al. 2016; Thomazi, Avila, Teixeira, 2022). Impedir essa atuação significa retroceder e aumentar o número de pessoas trans que se encontram desassistidas e que recorrem à automedicação e a métodos clandestinos para as transformações corporais (Araujo, Kopittke, Vicari, 2024; Mazaro, Cardin, 2017; Hanauer, Hemmi, 2020; Rocon et al., 2019). Estudos chegam a apontar que mais de 80% das pessoas trans acessam hormônios sem acompanhamento médico, o que reflete a precarização e vulnerabilidade à saúde dessa população (Krüger et al., 2019). 

A resolução do CFM, ao condicionar a hormonização exclusivamente à avaliação e ao acompanhamento de equipes de especialidades focais – como psiquiatria endocrinologia, ginecologia e urologia – ignora a competência das equipes de APS e de médicas e médicos de família e comunidade, desconsiderando sua potência na condução e coordenação desse cuidado. Negar esse papel significa reforçar um modelo centrado na especialidade focal, que limita a capilarização necessária ao cuidado e dificulta o acesso oportuno e equitativo para a população trans.

A privação do acesso ao acompanhamento em saúde pretendida pela resolução do CFM empurra à clandestinidade e à insegurança principalmente crianças e adolescentes, ao proibir o bloqueio puberal e restringir a hormonização cruzada somente a partir dos 18 anos, contrariando dados de realidade referentes ao adoecimento dessa população frente à desassistência (Turban et al.,2022 e 2023; Ashley et al. 2024; Olson-Kennedy et al., 2025)  e às principais diretrizes científicas internacionais (Coleman et al., 2022; Hembree et al., 2017).

Portanto, reafirmamos que o cuidado integral à população trans, incluindo o processo de hormonização cruzada, é indissociável da Atenção Primária à Saúde e, consequentemente, deve incluir médicas e médicos de família e comunidade. A APS possui papel estruturante no Sistema Único de Saúde (SUS), sendo pautada pelos princípios da universalidade, integralidade e equidade, previstos na Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988) e reafirmados na Política Nacional de Saúde Integral LGBT (Brasil, 2011). Negar o protagonismo da APS nesse processo significa aprofundar as desigualdades, historicamente enfrentadas por essa população, contrariando assim o princípio da equidade e os fundamentos da Lei dos Cuidados Inversos, proposta por Julian Tudor Hart (1971), a qual evidencia que os indivíduos que mais necessitam de acesso à saúde, são, paradoxalmente, aqueles que menos os têm. Tal fenômeno, amplamente descrito na literatura internacional (Watt, 2002), afeta particularmente grupos socialmente vulnerabilizados, especialmente a população trans (Pelucio, Mello, 2020). Ademais, é imprescindível defender a autonomia profissional para a avaliação clínica individualizada, ética e baseada nas melhores evidências disponíveis, conforme disposto no Código de Ética Médica (CFM, 2019), assegurando que as decisões em saúde sejam tomadas de forma compartilhada com seus protagonistas, respeitando as idiossincrasias individuais e comunitárias a partir de realidade territorial na qual se inserem. 

A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade manifesta, nesse sentido, grande preocupação diante da resolução nº 2.427 do CFM e se coloca à disposição para contribuir com respaldo científico em ações que revisem e ampliem normativas e políticas públicas pela saúde integral e de qualidade da população trans. Recomendamos, ainda, que médicas e médicos de família e comunidade, juntamente às suas equipes, permaneçam à disposição, atuando no acolhimento e na redução de danos, de crianças, adolescentes e pessoas adultas trans, bem como de suas famílias, especialmente nesse momento de incertezas e de maior vulnerabilidade.

 

Referências

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