Da luta por visibilidade à defesa de direitos fundamentais para pessoas trans

31 de janeiro de 2025

Janeiro é marcado pelo Dia da Visibilidade Trans, datado dia 29. Nesta data, em 2004, um grupo de mulheres trans e travestis se reuniu em frente ao congresso nacional para reivindicar direitos. Ao longo dos últimos 20 anos, observamos mudanças no cenário de cuidado em saúde para pessoas trans, com a implementação de políticas inéditas na história do SUS, apesar das suas contradições, como em 2008 e 2013, com a publicação das portarias intituladas como “Processo Transexualizador”. Apesar disso, a luta por reconhecimento e garantia de direitos fundamentais dessa parcela da população ainda passa por questões como acesso ao trabalho formal, à educação e à saúde. É notável, nesse contexto, a ausência de políticas a nível de Ministério da Saúde no âmbito da Atenção Primária à Saúde para a garantia de assistência e de formação profissional para o atendimento qualificado às pessoas trans.

Nessa ausência, se observam iniciativas, que surgem muitas vezes a partir de grupos de profissionais mobilizados pela demanda, de serviços que funcionam como porta de entrada e de acesso, ambulatórios trans centralizados organizados em estruturas de unidades básicas de saúde ou de centros de referência da atenção secundária, os quais passam longe da formalização e do recebimento de recursos pelo Ministério da Saúde. Muitas dessas iniciativas contam com residentes e médicas e médicos de família e comunidade, servem também como campo de formação e se orientam para a garantia do cuidado integral em saúde de pessoas trans na Atenção Primária à Saúde (APS).

Essas mudanças, nos últimos 10 anos, tornaram as discussões sobre cuidado de pessoas trans em saúde no âmbito da medicina de família e comunidade cada vez mais frequentes, ao passo que encontramos como competência essencial no currículo baseado em competências da SBMFC o manejo de questões relacionadas à identidade de gênero e à transexualidade e como competência avançada o manejo da hormonização. É um desafio ainda presente, contudo, a garantia do alinhamento dos programas de residência a essas competências. Além disso, a presença da MFC na Atenção Primária brasileira ainda está distante de representar sua maioria e, nesse ponto, a expansão da qualificação médica para o cuidado às pessoas trans na APS se depara com questões sobre a forma como isso dialoga (ou não) com a expansão da gestão da APS por Organizações Sociais de Saúde e por outros modelos empresariais, com os programas de provimento médico ou mesmo com o modelo de financiamento da APS.

Nas últimas semanas, grandes corporações globais anunciaram a retirada de ações relacionadas à garantia de direitos e respeito à diversidade de orientação sexual e identidade de gênero, afetando diretamente pessoas LGBTIA+. Suspensão de participação em pesquisas externas, incluindo levantamentos sobre inclusão de funcionárias/os LGBTIA+, encerramento de política nas contratações e remoção de absorventes dos banheiros masculinos são algumas ações anunciadas por empresas que até dezembro de 2024 eram exemplos de inclusão e diversidade. Além disso, desde a recente posse de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos, ataques diretos aos direitos da população trans têm sido proferidos em discursos com alcance mundial, um símbolo de uma onda ultraconservadora que se alinha ao poder estatal em diversos países.

A estratégia de focar em grupos populacionais, entre eles pessoas LGBTIA+, como representantes de uma ameaça aos valores morais e religiosos não é nova. Isso supostamente justifica ações governamentais que derrubam direitos sociais e a participação popular de forma ampla, assim como lançam uma cortina de fumaça sobre debates importantes para a população como um todo, como as catástrofes climáticas e o aumento da desigualdade social. Esses ataques impactam diretamente o cenário brasileiro não só no avanço da garantia de direitos humanos fundamentais às pessoas trans, mas também na manutenção de direitos conquistados em décadas de lutas democráticas.

Ao longo de 2023, o Ministério da Saúde, através da Secretaria de Atenção Especializada, elaborou, conjuntamente com profissionais de saúde e movimentos sociais de pessoas trans, o Programa de Atenção à Saúde da População Trans, chamado PAES Pop Trans. Esse programa foi aprovado pela Comissão Intergestores Tripartite em janeiro de 2024 e apresentado pelo Ministério da Saúde, em evento presencial, no dia Internacional de Direitos Humanos, em dezembro de 2024. O programa está alinhado com as melhores evidências científicas e garante uma significativa expansão nos procedimentos ofertados e no número de serviços, reorganiza os serviços e a rede para a garantia de cuidados específicos à saúde de pessoas trans. Além disso, apesar de estar situado no âmbito da atenção especializada, inclui médicas e médicos de família e comunidade como componentes da equipe de atendimento ambulatorial e prevê o repasse financeiro aos serviços habilitados para o matriciamento de casos com a APS, teleatendimento e atendimento nos territórios. Essas propostas estão longe de suprir a ausência de estratégias concretas para a qualificação do acesso à população trans na APS, mas inegavelmente representam imenso avanço na política pública em saúde a essa população. Apesar da conclusão e apresentação do PAES Pop Trans desde início de 2024, não houve ainda sua publicação oficial.

A população trans segue sendo um grupo excluído e violentado sistematicamente, com frequentes vivências de abandono familiar, baixo acesso ao ensino formal e menor inclusão ou permanência no mercado de trabalho devido à falta de políticas específicas, como uso de nome social e implementação de canais de denúncias. As violências às pessoas trans, que acontecem não só no nível individual mas também institucional e, inclusive, na saúde, são intensificadas no caso de pessoas trans negras, indígenas e periféricas, expondo essas pessoas a maiores índices de agravos em saúde mental como depressão e suicídio, aumento de risco da infecção pelo HIV e outras IST, à prostituição compulsória e ao assassinato, entre outras condições de saúde determinadas socialmente. É preciso compreender as lutas pela garantia de saúde digna às pessoas trans de forma alinhadas com as lutas por direitos humanos fundamentais, a partir da equidade, e alinhadas à defesa do SUS, da saúde pública e de qualidade, orientada por uma Atenção Primária à Saúde forte.

Nesse dia da visibilidade trans, reafirmamos o compromisso da SBMFC com a defesa de direitos às pessoas trans, com a despatologização de suas identidades, com a defesa do PAES Pop Trans e com a reivindicação pela sua publicação. Esse compromisso constitui uma parcela da caminhada de luta pela justiça social e pelo entendimento da saúde como um direito coletivo e de todas as pessoas.

Autoria:

Marcello Medeiros Lucena, coordenador do Grupo de Trabalho em Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da SBMFC

Revisão:

Ana Paula Andreotti Amorim, integrante do Grupo de Trabalho em Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da SBMFC

Referências:

BRASIL, Comissão Intergestores Tripartite. Apresentação – Programa de Atenção Especializada à Saúde da População Trans (PAESPopTrans). In: 2 fev. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/gestao-do-sus/articulacao-interfederativa/cit/pautas-de-reunioes-e-resumos/2024/janeiro/paespoptrans/view. Acesso em: 29 jan. 2025.

BRASIL, Ministério da Saúde. Ministério da Saúde apresenta o Programa de Atenção à Saúde da População Trans. In: DIREITOS HUMANOS EM SAÚDE. 10 dez. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2024/dezembro/ministerio-da-saude-apresenta-o-programa-de-atencao-a-saude-da-populacao-trans#:~:text=A%20partir%20do%20Paes%20Pop,medica%C3%A7%C3%B5es%20utilizadas%20na%20hormoniza%C3%A7%C3%A3o%20cruzada. Acesso em: 29 jan. 2025.

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