Este é o terceiro texto de uma série de mitos sobre a saúde da população de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersexo, assexuais e demais pessoas com variabilidade de gênero ou de orientação sexual (LGBTIA+).
Os primeiros conteúdos sobre LGBTIA+fobia institucional e pessoas intersexo estão disponíveis no link.
A atividade produzida pelo Grupo de Trabalho de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da SBMFC desmistifica pensamentos e ideias que são comuns na prática clínica.
O conteúdo desta página aborda mitos sobre pessoas trans e foi desenvolvido por Ana Paula Andreotti Amorim, médica de família e comunidade e Wandson Padilha, médico de família e comunidade, ambos membros do GT.
Mito 1: É possível dizer se uma pessoa é “trans” ao olhar para ela.
A palavra “trans” é um diminutivo, utilizado para referir-se a “Travestis”, “Mulheres Transexuais”, “Homens Trans”, “Pessoas Transmasculinas”, “Pessoas com variabilidade de gênero” ou mesmo “Transgêneras”. Existem muitas disputas teóricas e políticas acerca dos termos que melhor representam essa população e suas especificidades e vulnerabilidades,(1) apesar disso, uma pessoas “trans” deve sempre ser tratada com o seu gênero identitário e pelo termo que ela entende que melhor a representa.
É uma população plural, mas que tem em comum entre si um fato: o gênero dessas pessoas não corresponde ao gênero que foi atribuído a elas quando nasceram (ou seja, a expectativa de que seriam Mulher ou Homem não corresponde à sua vivência ou à sua identidade de gênero).(2) Muitas dessas pessoas, inclusive, são pessoas não-binárias, que não se enquadram em uma perspectiva em que existam somente dois gêneros. Os gêneros podem ser compreendidos como diversos espectros, cada um com suas nuances e nos quais as pessoas podem reconhecer-se muito ou pouco (mulher, homem, gênero neutro, agênero etc.).(3)
Muitas pessoas “trans” sentem a necessidade de mudar a forma como se apresentam perante as outras pessoas, ou até de transformar características do seu corpo, para sentirem-se melhor e/ou serem melhor aceitas na sociedade e sofrerem menos violências. Mas muitas não tem essa necessidade ou ainda não conseguiram mudar um aspectos que são tão definidores da nossa identidade, como os relacionados ao gênero.(4)
Portanto, não é possível saber quais pessoas são cisgênero (que se sentem bem e/ou vivem de acordo com o gênero atribuído ao nascimento) e quais são “trans”, a não ser que se pergunte e seja criado um espaço seguro para a pessoa poder nos contar. Pautar a realidade das outras pessoas como se houvesse somente uma forma de existir, voltada para a normatividade cisgênero heterossexual, é também uma forma de invisibilização e violência das pessoas LGBTIA+ que atendemos.(5)
Mito 2: Só preciso oferecer nome social para as pessoas que sei serem “trans”.
Nome social é aquele com o qual uma pessoa prefere ser chamada, independentemente aos seus registros civis ou aos seus documentos.
Uma das muitas violências sofridas pelas pessoas “trans” nos serviços de saúde é não terem o seu nome social e o seu gênero respeitado, muitas vezes mesmo quando solicitam explicitamente. Oferecer o nome social para todas as pessoas no momento em que são cadastradas nos serviços de saúde, independentemente à sua aparência ou ao seu pedido, é uma obrigação dos serviços e um direito de todas as pessoas usuárias, inclusive das pessoas “trans”.(6)
Da mesma forma, é um dever respeitar o nome social de uma pessoa, seja qual for a aparência dela ou a forma como interpretamos, com nossos próprios parâmetros, o seu gênero. Cabe lembrar que desde 2019 a LGBTIfobia, que inclui a transfobia, é reconhecida com um crime,(7)(8) e diversos estados do Brasil tem leis específicas que protegem os direitos das pessoas LGBTIA+.
Mito 3: Tem muito poucas ou nenhuma pessoa “trans” no território que atendo.
Pesquisas encontram frequências variadas de pessoas “trans” ao redor do mundo, em diversas culturas e momentos históricos, mas esses números, que provavelmente subdimensionam a população de pessoas “trans”, chegam a 1,3% da população em geral, (9) o que corresponde a mais de 45 a cada 3500 pessoas. No Brasil, um estudo ainda não publicado encontrou uma porcentagem maior do que 1,3%.(10)
Portanto, se não conhecemos as pessoas “trans” que vivem nos territórios que atendemos, provavelmente não estamos criando um ambiente acolhedor e livre de opressões e violências para que se aproximem dos serviços de saúde e para que se sintam confortáveis para nos comunicar sobre suas vivências e identidades.
Mito 4: Na prática sexual, mulheres trans e travestis não praticam penetração insertiva (não podem ser ativas) e homens trans não tem penetração vaginal.
A identidade de gênero não está diretamente relacionada às práticas sexuais das pessoas e não estabelece os desejos ou as forma de sentir prazer.
Mulheres trans e travestis podem possuir pênis e utilizá-lo na sua prática sexual para penetração em seu parceiro ou parceira. O uso de hormônios pode gerar, em algumas situações, dificuldade de ereção, devido a redução dos níveis de testosterona. Nessas situações, após avaliação adequada e descartar outras causas de disfunção erétil, o médico assistente pode associar algum inibidor da fosfodiesterase como sildenafil ou taladafil.(4)
Homens trans podem possuir vagina e desejarem ser penetrados. Em algumas situações, o uso prolongado de testosterona pode gerar atrofia vaginal, levando a dor e desconforto à penetração. Esse desconforto pode ser reduzido com o uso de lubrificantes à base de água ou prescrição de estrógenos de uso tópico.(11)
É importante reforçar o uso de preservativos para prevenção de IST’s, podendo para a penetração, serem utilizados os preservativos internos ou externos, inclusive quando se optar pelo uso de vibradores e dildos.(12)
Mito 5: Pessoas “trans” não podem ter filhos, logo não necessitam de métodos contraceptivos
Algumas transformações corporais podem gerar infertilidade, como cirurgias (gonadectomias e histerectomia), inibição de maturação sexual das gônadas (com o “bloqueio puberal”) e mesmo o uso de hormônios.
As maiores dúvidas, porém, dizem respeito à infertilidade gerada pelo uso de hormônios. Por exemplo: um homem trans ou uma pessoa transmasculina com sistema reprodutor útero-ovariano e que usa testosterona tende a não menstruar e a ter atrofia vaginal/cervical/endometrial, além de anovulação, porém não é incomum que ocorram períodos ovulatórios. Da mesma forma, uma mulher transexual ou uma travesti com sistema reprodutor testicular-peniano e que usa estrógenos e/ou antiandrógenos tende a ter a espermatogênese diminuída, com alteração da quantidade e qualidade dos espermatozóides, mas também é possível que espermatozóides viáveis estejam presentes no sêmen.
Por isso, não é possível garantir a eficácia do uso da hormonização a pessoas trans como contraceptivo, mesmo que a fertilidade diminua e que habitualmente ela seja recuperada de maneira inversamente proporcional ao tempo de uso do hormônio (quanto mais tempo o hormônio foi usado, quando cessar o uso dele mais tempo vai levar para a pessoa voltar ao seu nível de fertilidade, que tende a ser menor). Por esse motivo, e por outras transformações corporais definitivas, a pessoa precisa decidir conscientemente e de maneira informada sobre o uso de hormônios, portanto cabe a profissionais de saúde que a acompanham abordar o desejo reprodutivo, a possibilidade de congelamento de gametas, etc.
Pessoas “trans” em uso de hormônios que tem práticas sexuais que possam levar à gestação precisam ser informadas e todos os métodos contraceptivos precisam ser oferecidos (com exceção de estrógenos para homens trans e pessoas transmasculinas, visto que esses podem trazer características corporais indesejadas).(13)(14)
Mito 6: Todas as pessoas “trans” querem fazer cirurgia de redesignação genital
Algumas pessoas que decidem mudar seus corpos podem escolher fazê-lo de diferentes formas. É possível fazer exercícios para que algumas partes do corpo se desenvolvam, mudar a postura e os gestos, eliminar pelos do corpo ou incentivá-los a crescer, usar hormônios para desenvolvimento das “características sexuais secundárias” ou mesmo fazer cirurgias. As mudanças corporais podem ser muito importantes para uma pessoa “trans”, e algumas vezes são definidoras de seu bem-estar individual e social.
As cirurgias contempladas pelo SUS para homens trans e pessoas transmasculinas são: mamoplastia masculinizadora (mastectomia com plástica mamária que inclui reposicionamento de mamilos), histerectomia (associada ou não a salpingectomia e ooforectomia) e, em caráter experimental e/ou sob decisão judicial, neofaloplastia e vaginactomia (construção de um pênis, com prótese erétil e testicular, embora alguns serviços realizem também a metoidioplastia – que não requer prótese).
Às mulheres trans e travestis são possíveis: vulvoplastia e vaginoplastia (construção de vulva e vagina, que pode incluir orquiectomia), plástica mamária bilateral (próteses mamárias) e tireoplastia (redução do “Pomo de Adão” e agudização da voz).(15) Existem ainda outras cirurgias que não são contempladas nas propostas do SUS, como lipoaspiração e lipopreenchimento, “feminização facial”, entre outras.
Infelizmente ainda é muito comum que, na impossibilidade de acessar técnicas seguras, mulheres transexuais e travestis façam aplicação de silicone industrial, o que muitas vezes acarreta adoecimentos durante toda a vida.
Não há informações sobre a porcentagem real de pessoas “trans” que desejam realizar cirurgias, pois ainda há muita dificuldade em acessar não só as cirurgias (através do SUS ou pelo Sistema Suplementar / Privado), mas também os próprios serviços de saúde. Além desse fato, um dos fatores que impulsionam o desejo das pessoas “trans” mudarem seus corpos é o medo de violência e o sentimento disfórico. A disforia de gênero pode representar somente a insatisfação de uma pessoa com as características marcadoras de gênero no seu corpo, mas também costumam estar associadas à leitura e aos apontamentos feitos pelas demais pessoas sobre como seu corpo difere do corpo de uma pessoa cisgênero e, portanto, associada à exclusão social. Esse sofrimento tende a diminuir quando as pessoas “trans” encontram possibilidades existirem e de viverem sem tantas exclusões, o que não as condiciona, necessariamente, querer ou não realizar transformações em seu corpo.
Muitas pessoas “trans”, no entanto, decidem não alterar seus corpos permanentemente e procuram (ou não) expressar seu gênero de outras maneiras (como por meio de roupas, gestuais ou maquiagem, por exemplo) sem sentir necessidade de realizar cirurgias ou mesmo usar hormônios.
Mito 7: O manejo da hormonização de pessoas trans não pode ser realizado na APS
A Atenção Primária à Saúde (APS) é a porta de entrada do Sistema de Saúde e deve atuar como ordenadora do cuidado. Em muitos municípios, a Estratégia de Saúde da Família e mesmo serviços da rede privada de saúde já tem no Médico e na Médica de Família e Comunidade a referência para o manejo da hormonização em pessoas trans, como é o exemplo do município de São Paulo, que tem previsto para julho/2020 o lançamento de um protocolo específico para hormonização de pessoas “trans” na APS.
O Currículo Baseado em Competências da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade já traz a hormonização como um atributo avançado para a formação de Médicos e Médicas de Família e Comunidade, havendo muitos programas de residência médica em MFC que já adotam a hormonização de pessoas trans como componente obrigatório do currículo de formação.
Em muitos locais do mundo o cuidado com a hormonização é atribuído a profissionais da Atenção Primária, como Canadá, Austrália e Uruguai e muitos serviços dos EUA.
Referências:
(1) Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção de Direitos LGBT. Relatório Final – 3a Conferência Nacional de Políticas Públicas de Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. 2016.
(2) Lanz L. Dicionário Transgênero. Ed Transgente. 2016
(3) Mardell A. The ABCs of LGBT. Mango Media. 2016.
(4) Lopes Junior A, Amorim APA, Ferron MM. Sexualidade e diversidade. Tratado de Medicina de Família e Comunidade, Capítulo 79, 2ª edição, Porto Alegre, Artmed, 2019
(5) Moscheta MS, Fébole DS, Anzolin B. Visibilidade seletiva: a influência da heterossexualidade compulsória nos cuidados em saúde de homens gays e mulheres lésbicas e bissexuais. Sau. & Transf. Soc. 2016;7(3):71-83.
(6) Ministério da Saúde. PORTARIA Nº 1.820, DE 13 DE AGOSTO DE 2009 – Dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde
(7) Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26
(8) Mandato de Injução nº 4.733. Distrito Federal (agravo regimental)
(9) Winter S, Diamond M, Green J, Karasic D, Reed T, Whittle S, et al. Transgender people: health at the margins of society. Lancet. 2016;388(10042):390–400.
(10) Dados parciais apresentados no 1º Encontro Nacional de Serviços de Atenção à Transexualidade, em 27/04/2019. São Paulo – SP
(11) Wesp L. Transgender patients and the physical examination. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People, Chapter 4, 2nd edition, California, 2016.
(12) Núcleo de Homens Trans da Rede Trans Brasil. Saúde do homem trans e pessoas transmasculinas, 2018. [Internet] Disponível em: http://redetransbrasil.org.br/wp-content/uploads/2018/03/Cartilha-Homens-Trans.pdf
(13) Heath RA, Wynne K. A guide to transgender health: state-of-the-art information for gender-affirming people and their supporters [livro eletrônico]. Santa Barbara, California: Praeger, an imprint of ABC-CLIO, LLC; 2019. Acesso em 30 junho de 2020.
(14) Center of Excellence for Transgender Health. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People [Internet]. University of California, San Francisco. 2016. p. 199.
(15) Ministério da Saúde. Processo Transexualizador no SUS ampliado – Portaria GM/MS nº 2.803, de 19 de novembro de 2013