*Por Arthur Fernandes, médico de família e comunidade, paliativista, membro do Grupo de Trabalho de Saúde e Espiritualidade e do Grupo de Trabalhos de Cuidados Paliativos da SBMFC.
O encontro clínico é um momento único, onde duas singularidades se expõem: profissional e pessoa. Na consulta, como costumamos chamar, são colocadas queixas, problemas, fragilidades e angústias perante à vida: questões relacionadas a doenças do corpo, transtornos mentais, problemas sociais e, por último, mas não menos importante, sofrimentos de cunho religioso e/ou espiritual.
A espiritualidade pode ser definida, de acordo com Puchalski1, como uma dimensão da humanidade, podendo ser expressa por meio de crenças, valores ou práticas, representando a busca do indivíduo por conexão e transcendência, seja através de amigos, família, trabalho, animais, natureza ou qualquer coisa considerada sagrada.
Como é possível perceber, trata-se de um conceito bastante amplo e abstrato. Um pouco mais próximo da nossa experiência cotidiana e concreta está a religião. Esta, segundo Koenig2, é um conjunto de símbolos, dogmas e práticas convenientemente adotadas por uma certa comunidade como forma de expressão de sua vinculação com o que acredita ser sagrado. Evidentemente, cada pessoa pode expressar sua religião de maneira particular. A essa manifestação singular de cada um, que pode ser mais ou menos intrínseca, e mais ou menos organizacional, dá-se o nome de religiosidade.
Como elemento estruturante da experiência humana, a espiritualidade está ligada a manutenção e fortalecimento da saúde física, mental e social, havendo estudos, cada vez mais qualificados nas últimas três a quatro décadas, apontando benefícios diretos como redução de estresse, ansiedade e depressão, uso de substâncias e tentativas de suicídio, além de melhor qualidade de vida e prognóstico psiquiátrico3, bem como aumento da expectativa de vida global em até 7 anos adicionais4 e diminuição do estresse oxidativo, contribuindo para enfrentamento às neoplasias e doenças degenerativas, como o Alzheimer5. Não obstante, há diversos impactos indiretos da espiritualidade e religiosidade, como o aumento da resiliência – isto é, estratégias subjetivas para lidar com os desafios da vida -, do convívio social e de uma visão positiva do mundo, compartilhada por uma comunidade que pode oferecer suporte.
Na consulta, a abordagem da espiritualidade pode ser realizada de forma natural, sendo facilmente investigada dentro da história social da pessoa e da família, se for necessário seguir uma padronização para a entrevista. De uma forma geral, é importante considerar as prioridades de cada pessoa a cada consulta, se possível construindo tais prioridades de forma compartilhada e, sendo a espiritualidade e/ou religiosidade uma delas, aproveitar tais oportunidades. É fundamental conhecer a fé ou crença do indivíduo, identificando se há uma ou mais crenças ou valores definidos e se eles se restringem a uma ou mais religiões formais. Também é mister entender a importância da espiritualidade dentro da vida da pessoa, se se trata de uma fonte de apoio ou não, se há dúvidas ou angústias espirituais relacionadas a eventos da vida e se, por exemplo, a pessoa levaria a espiritualidade em conta na tomada de uma decisão sobre sua saúde. Ainda se faz necessário investigar se há uma comunidade de apoio para essa pessoa, isto é, outros com os quais ele compartilha sua fé e valores, com quem desenvolve práticas e rituais e onde pode obter apoio ou suporte em situações difíceis. Por fim, mas não menos importante, é interessante questionar se o indivíduo tem preferência por algum líder espiritual ou religioso, ou alguma pessoa ou grupo que lhe traga elementos espirituais de forma salutar e confortável. Uma estratégia prática para essa abordagem é o protoloco FICA, desenvolvido por Puchalski1.
Nos últimos vinte anos, os estudos sobre espiritualidade e religiosidade e sua influência na saúde humana ganharam maior volume e qualidade científica, estimulando suas discussões a nível de graduação e pós-graduação. Hoje, já há mais de quarenta ligas acadêmicas desenvolvendo atividades em instituições públicas ou privadas no país, além de algumas dezenas de cursos de medicina (e de outras áreas da saúde) que contam com disciplinas (obrigatórias ou opcionais) que abordam a espiritualidade e alguns programas de pós-graduação em saúde e espiritualidade, a nível de especialização lato sensu.
A abordagem da espiritualidade pelo médico pode fortalecer o vínculo e a sensação de conexão do paciente, uma vez que ele entende que essa parte de sua vida também é importante para o profissional. Confiança, sensação de atenção às necessidades e valorização das prioridades são melhoradas na relação. As necessidades espirituais do paciente podem, inclusive, estimular o médico a olhar para si, voltando-se ao autoconhecimento e elaborando suas próprias questões.
Ao longo da vida, as ameaças à integridade individual ou mesmo fatores que afetam o equilíbrio da pessoa mudam de tom. Sejam transições em ciclos de vida, separações, chegada de filhos, perdas de emprego, mudanças de cidade, doenças agudas ou crônicas, todos podem afetar o indivíduo e exigir respostas mais ou menos adaptativas à nova realidade. No caso de doenças graves e ameaçadoras à vida, como cânceres avançados, insuficiência cardíaca, doença pulmonar crônica, hepatopatias, lesões neurológicas extensas, dentre outros, a perspectiva de recuperação da vida como era antes se perde. Nessa trajetória com a doença, os encontros com novos médicos e tratamentos, as recuperações, os internamentos e as intercorrências e o medo da morte simbolizam “pedras” no caminho.
Em situações extremas, quando se esgotaram os recursos da medicina para curar a doença e a finitude é esperada, é natural que as pessoas busquem amparo e consolo junto às suas crenças e valores mais preciosos. Nesse contexto, pacientes, famílias e profissionais são desafiados a acolher a finitude com humildade e preparar-se para um dos momentos mais difíceis da vida, a despedida, com dignidade. A espiritualidade e a religiosidade em pessoas com doenças graves e sob cuidados paliativos6 também estão associadas a melhor compreensão da finitude, aceitação da realidade e exercício da autonomia no viver, com qualidade, o tempo que for possível.
O médico de família e comunidade, habituado ao acompanhamento longitudinal da população, pode encontrar maior facilidade para abordar a espiritualidade ao longo dos encontros clínicos, compreendendo que há benefícios objetivos para a consulta presente (vínculo e confiança) e para o futuro (entendimento da pessoa como um todo e planejamento dos cuidados), além de estímulo ao próprio engajamento comunitário e ao autoconhecimento, refletindo sobre suas necessidades espirituais, resiliência e qualidade de vida.
Referências:
- Puchalski, C. M., Ferrell, B., Virani, R., Otis-Green, S., Baird, P., Bull, J., et al. Improving the quality of spiritual care as a dimension of palliative care: The report of the consensus conference. Journal of Palliat Med. 2009; 12(10), 885–904.
- Koenig HG. Religion, Spirituality and medicine: Application to clinical practice. JAMA. 2000;284:1708.
- Bonelli RM, Koenig HG. Mental disorders, religion and spirituality 1990 to 2010: a systematic evidence-based review. J Relig Health. 2013;52:657-73.
- Hummer, R.A.; Rodgers, R.G.; Nam, C.B.; Ellison, C.G. – Religious involvement and U.S. adult mortality. Demography 36(2): 273-285, 1999.
- Koenig H.G.; Cohen H.J.; George L.K.; Hays J.C.; Larson D.B.; Blazer D.G. Attendance at religious services, interleukin-6, and other biological indicators of immune function in older adults. Int J Psychiatry Med. 1997; 27:233-250.
- Pearce MJ, Coan AD, Herndon JE 2nd, et al. Unmet spiritual care needs impact emotional and spiri-tual well being in advanced cancer patients. Support Care Cancer. 2012 Oct;20(10):2269-76.