Os (As) médicos (as) de família e comunidade estão habituados(as) à discussão sobre os excessos da prevenção, sobre como ações realizadas rotineiramente para pessoas assintomáticas podem provocar mais danos do que benefícios. Do mesmo modo, há uma preocupação crescente com o impacto ou com a efetividade de um grupo de atividades que costumam ser definidas como de promoção à saúde, especialmente as educativas. Não é preciso ir muito longe, no entanto, para ouvir de gestores, acadêmicos e profissionais de unidades básicas de saúde (UBS) que o principal objetivo da atenção primária à saúde (APS) é a prevenção e a promoção.
Por que, apesar da ausência de evidências científicas favoráveis, os profissionais da APS pública no Brasil se veem frequentemente envolvidos em atividades preventivas e educativas? Por que a maioria de nossas unidades de saúde sofre com a falta de consultas médicas, de enfermagem e odontológicas para as pessoas que se apresentam com dor, mal-estar, sintomas variados ou necessidades administrativas ao mesmo tempo em que os profissionais usam períodos inteiros para ações preventivas/educativas cujo conteúdo é muitas vezes de amplo conhecimento da população?
Não pretendo discutir aqui as evidências científicas contrárias (ou favoráveis) a agendarmos consultas mensais para gestantes e crianças menores de um ano, a realizarmos grupos regulares com os chamados hipertensos e diabéticos, a nos deslocarmos até as escolas para dizer às crianças como escovar os dentes ou aos adolescentes como pode ser ruim manter relações sexuais ou como manter distância de substâncias proibidas.
A minha questão é a do porquê gostamos de fazer isso? Por que temos um certo prazer ao dizer para o rapaz com dor lombar na sala de espera que hoje não dá porque é o dia das gestantes ou da reunião da equipe? De onde vem essa confiança ao dizer para a moça com dor de cabeça ou dor de dente que deveria saber que é preciso agendar uma consulta na segunda terça-feira do mês? E, mesmo para aquele assíduo frequentador conhecido como hipertenso, o que sustenta a razão de quem diz que hoje não é dia de falar da dor no joelho? Essa sorte de atitudes encontra ressonância e paz em que tipo de verdades lá no fundo da alma?
Claro que o(a) prezado(a) leitor(a) não é um(a) desses(as) profissionais acima, mas imagino que já tenha vivenciado essas situações. Seguem algumas hipóteses, desprovidas de qualquer rigor científico, sobre as camadas mais profundas dessas nossas ações:
· Uma APS que nasce do postinho de vacina – diferentemente de países em que a APS nasce de uma rede de clínicos gerais cujo objeto central do trabalho era o acompanhamento de pessoas e de seus problemas clínicos mais comuns, no Brasil ela surge de uma rede de postos de saúde originalmente pensados para ações preventivas e atendimento clínico de grupos específicos.
· O charme inabalável da prevenção – poucas palavras traduzem tão bem um ideal moderno, do controle do homem sobre a natureza, da valorização da juventude, da negação da dor, da senilidade e da morte. Já ouvi de estudiosos que, se a prevenção funcionasse 100%, não haveria doenças, sofrimento, mal-estar. Se o foco da APS é a prevenção, o enfermo é um equívoco.
· Temos que educar o outro – ainda que vivamos no país de Paulo Freire e da educação libertadora, a prática majoritária é reflexo da desigualdade brutal e revela o olhar de uma classe social para outra. Quanto do nosso tempo de trabalho é usado para dizermos para as pessoas que convocamos como deveriam ser e o que deveriam fazer? O cidadão poderia perguntar: “Quanto estamos te pagando para você me dizer que preciso me libertar dessa sociedade opressora e cheia de sal nos alimentos?”.
· Não compramos o pão da nossa padaria – a maioria dos servidores públicos brasileiros recebe recursos públicos para usar outro sistema de saúde (privado), o que nos leva a concluir que o lugar onde eu trabalho não precisa ser parecido com aquele que eu gostaria de usar. É o retrato do abismo que separa o usuário do prestador.
· Quem nos contrata, contrata o quê? – é comum ouvir daqueles que escolhem a carreira pública que o fazem porque desejam ter ‘estabilidade’. Some a isso o fato de que se ganha por tempo para exercer uma determinada profissão, mas não para atuar desse ou daquele modo ou para assumir com autonomia suas obrigações. É a fórmula para que o serviço funcione para o servidor.
· A qualidade de vida (do profissional de saúde) – o ritmo de uma APS que se oferece para cuidar e atender aos problemas mais comuns das pessoas sob sua responsabilidade é dinâmico. Consultas de cinco, 10, 15, 20 minutos, contatos presenciais, virtuais, atendimentos no domicílio em qualquer dia da semana, entrevista clínica, exame físico, procedimentos, pequenas cirurgias. Pacientes a cada 20 minutos, a maioria para consultas de rotina, períodos fechados para visitas domiciliares e reuniões pode parecer melhor para a própria qualidade de vida, mas não para a dos pacientes.
Se me parece interessante que cada profissional de saúde reflita sobre os próprios motivos para que atue dessa ou daquela maneira, não imagino que uma grande mudança na qualidade dos serviços dependa dessas reflexões individuais. Precisamos de um novo formato para produzir novas essências.
Paulo Poli, médico de família e comunidade.