Rede Entrevista

20 de abril de 2011


 

A Rede de Pesquisa em Atenção Primária a Saúde publicou entrevista com o presidente da SBMFC, Gustavo Gusso. O especialista fala sobre a APS, destaca os pontos positivos e negativos do SUS e aponta também os destaques do 11º Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade. Leia na íntegra estas e outras considerações no portal da Rede de Pesquisa em APS.
 

 

 

 

 

 

Entrevista: Dr. Gustavo Gusso

(reprodução: portal Rede de Pesquisaem APS)

Graduado em medicina pela Universidade de São Paulo, com Residência em Medicina de Família e Comunidade pelo grupo Hospitalar Conceição. Mestre em Medicina de Família pela Universidade de Western Ontário e doutor em Ciências Médicas pela Universidade de São Paulo. É presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Membro da Faculdade de Saúde Pública do Reino Unido

1) Quais aspectos você considera positivos e negativos no Sistema Único de Saúde?
Bem, em dezembro, quando fui ao Qatar – portanto, antes da posse do Ministro Padilha –, defendi durante o evento sobre APS voltado aos países árabes que a grande conquista, assim como a grande deficiência, é o acesso. Barbara Starfield condensou a APS em quatro atributos nucleares, mas, se fôssemos condensar em um, seria também o acesso. Porém, ele é a consequência de uma política que tem que ser pactuada com toda a sociedade.
Poderia dizer que, com relação a essa política chamada SUS, algumas fortalezas são: a decisão da sociedade brasileira durante o processo da Constituição de 1988 (depois da ditadura) de ter um sistema de saúde público universal coberto por impostos; a reestruturação da APS brasileira após 1994 por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF); e excelentes programas de imunização, atendimento pré-hospitalar (SAMU) e transplantes, entre outros, com ampla cobertura, atingindo todos os níveis sociais.

E elencaria as seguintes fraquezas: sistema hospitalocêntrico; sistema focado em doenças e agora se entregando à indústria da prevenção secundária; desproporção de médicos especialistas (incluindo pediatras e ginecologistas) e generalistas – típica de países subdesenvolvidos, além dos Estados Unidos; gestores dos três níveis mal qualificados e com baixo grau de internacionalização; universidades ainda formando para o mercado privado (residências mais procuradas continuam sendo dermatologia, oftalmologia e radiologia) e ensino focado na doença e pouco conteúdo para entender o adoecer; pouco envolvimento dos Estados na articulação das redes; pouco investimento público (menos da metade do que se investe em saúde no Brasil vem do setor público); como consequência do histórico de alto investimento privado, há a contaminação da cultura da saúde como um bem material; boa parte da população gostaria de ter plano de saúde e escolher a especialidade do profissional que gostaria de utilizar como primeiro contato com o sistema de saúde; e classes médias e altas não se decidem pelo sistema público e privado (essa decisão é necessariamente anterior à melhora da qualidade do sistema e condição para isso).

2) E na Atenção Primária à Saúde brasileira?
A maior fortaleza foi ter desenvolvido uma estratégia moderna e alinhada com o que se faz de melhor na atenção primária dos países desenvolvidos, onde a justiça social é um valor à chamada Saúde da Família. Outra grande fortaleza foram as ações da SGTES nas gestões dos Ministros Saraiva Felipe e Temporão. Criou várias iniciativas que colocaram o sistema de formação finalmente no mesmo rumo da atenção: Telessaúde, Pró-Saúde, PET-Saúde. Também houve enormes avanços durante as últimas gestões na integração das ações de vigilância em saúde à ESF. A PNAB, lançada em 2006, foi um marco que possibilitou esses avanços. Nada impede de avançar mais, ou seja, de acelerar o “carro” corrigindo eventuais deficiências.

As principais dificuldades da APS brasileira são o baixíssimo investimento na atenção primária e na ESF para que os problemas sejam resolvidos “por dentro” (critica-se o modelo, quando, na verdade, os problemas não são inerentes a ele), pagamento fixo que pune o profissional que se dedica ou que se capacita mais (o ideal seria pagamento por captação com base no número de pessoas na área corrigido pela vulnerabilidade social e um acréscimo de 10% a 20% de desempenho pactuado com os profissionais), gestores das três esferas com pouca experiência em atenção primária, excessivo número de pessoas por equipe, infraestrutura das unidades de saúde bastante deficientes, vínculos trabalhistas precários e pouca regulação do ensino, principalmente médico.
As mudanças precisam ser graduais e consistentes e com um modelo claro para o País todo que seja flexível para se adaptar às realidades locorregionais, porém com limites precisos para que não ameacem os princípios do SUS e da APS. Praticamente todos os estudos feitos no Brasil por lideranças da Rede de Pesquisas afirmam que esse modelo exige equipe de generalistas na porta de entrada com um clínico-geral qualificado, enfermeiro, técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde. Também é preciso toda a rede de atenção desde os NASFs até o hospital terciário. Pode e deve haver ampliação das equipes mínimas conforme necessidades locais, bem como variações nas formas de contrato, sempre respeitando as leis trabalhistas. Na verdade, a PNAB de 2006 não impede que haja ampliação das equipes mínimas (alguns municípios já fazem isso) e que sejam incorporados incentivos na composição da remuneração. Ou seja, o modelo da ESF é moderno, flexível, mas precisa de investimento (o que vai desde a infraestrutura até a qualificação dos profissionais).

3) Quais os maiores avanços da APS no Brasil?
Respondi a uma parte dessa pergunta na anterior. O Brasil pertence a um seleto grupo de 11 países, com mais de 100 milhões de habitantes, que vai da China e EUA a Nigéria e México. Destes apenas o Japão tem um sistema universal – com pouco custo efetivo, diga-se de passagem. Além disso, ficamos na América Latina, onde imperam, ainda, os sistemas de “caixas” que o Brasil já quase superou. Ou seja, estamos na vanguarda. Nossa ESF serve de inspiração para outros países em desenvolvimento, como a África do Sul. Estamos sintonizados com o que ocorre de mais moderno no mundo. E claro que existem problemas – e sempre existirão. A questão é se mudaremos por dentro ou por fora. A ESF precisa ser incentivada constantemente pelas três esferas de governo, pois é contra-hegemonia. Faz parte de uma política de regulação da área da saúde e qualquer descuido poderá significar incentivo a modelos que não queremos, resultando no aumento da iniquidade, a qual combatemos. O grande desafio é atrair a classe média para usar o SUS sem oferecer um sistema tão ruim e ilusório quanto o que ela já usa: fragmentado, sem coordenação, focado em doenças e pouco custo efetivo.

4) Quais são seus maiores desafios como presidente da SBMFC?
A SBMFC é uma entidade científica e o desafio é melhorar a prática dos profissionais que estão na atenção primária. No Brasil, isso significa fazer o médico de Família cada vez mais equilibrado epistemologicamente, ou seja, saber lidar com problemas indiferenciados, atuar na promoção à saúde, entender o papel de filtro e a importância da prevenção quaternária, saber lidar com recursos finitos, atuar com base na melhor evidência científica disponível, saber explorar tanto a doença quanto o adoecer, praticar medicina centrada na pessoa, com abordagem familiar e comunitária, e, sobretudo, trabalhar em equipe e em rede.
Para isso, temos tentado organizar congressos com bastante qualidade científica, estamos reformulando a Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, traduzimos e produzimos conteúdo relevante para o profissional que está atuando nas equipes, organizamos duas vezes ao ano o concurso de título de especialista etc.
No entanto, às vezes não há como dissociar ciência de política, já que uma influencia a outra e vice-versa. Então, um desafio para qualquer dirigente da SBMFC é defender de forma científica modelos de APS que sejam compatíveis aos princípios de integralidade, universalidade e equidade sem utilizar os métodos sindicais. Não podemos dar nenhum passo para trás nesta altura do campeonato. É preciso corrigir as deficiências da ESF por dentro, tais como o financiamento insuficiente para promover a qualidade e cobertura de 50% da população, que, de novo, é ao mesmo tempo uma conquista de todos, mas, também, uma dificuldade, pois é preciso universalizar.


5) Um dos problemas para o fortalecimento da atenção primária está na contratação de profissionais, principalmente médicos. Como solucionar essa questão?

Um dos caminhos é o que faz praticamente toda a Europa Ocidental e o Canadá. As vagas de residência devem ser distribuídas conforme as necessidades do país, calculadas de forma que se controle a variável mercado, ou seja, oferta de serviços que não sejam necessariamente demandados. Nesse sentido, a demanda deve partir da APS. Na Inglaterra, Holanda, Canadá, Suécia, Noruega etc., a média de vagas para medicina de Família/clínica geral é de 40% de todas as de residência do país. Então, residência não é só gestão da educação, mas, principalmente, gestão do trabalho, afinal, já há salário, vínculo, direcionamento na carreira etc. No Canadá, por exemplo, se formam 2.500 médicos por ano, mais ou menos, são oferecidas 2.700 vagas de residência, sendo 1.151 para medicina de Família e 23 para dermatologia (https://w1c.e-carms.ca/pdws2011R1-1/jsp/pd.do?p=p1&m=1). Quem não fizer residência não pode exercer muitas funções, nem fazer “bico” como generalista esperando o outro concurso para residência. Há três interações e o recém-formado pode mudar de especialidade durante o processo caso não entre na primeira opção. Ou seja, o adolescente já entra na faculdade de medicina sabendo que tem 40% de chance de fazer medicina de Família/clínica geral e pode optar ou não pela carreira médica sabendo dessa condição. E, para universalizarmos a residência médica no Brasil, precisaríamos de menos de 200 milhões de reais ao ano, ou seja, pouco para o orçamento do Ministério da Saúde. Por que não fazemos isso? Por que não realizamos uma força-tarefa dos Ministérios da Educação, Ministério da Saúde, AMB, CFM, sociedades de especialidade etc. nesse sentido?

6) A SBMFC realizará, em junho, o 11º Congresso Brasileiro de Medicina de Família. Quais serão os grandes destaques desse evento?
Teremos temas voltados para todas as áreas. Serão 10 salas simultâneas. Falaremos de graduação, residência, NASF, necessidades de especialistas, pagamento por performance, nova política de atenção primária brasileira, etc. Talvez um dos destaques será o excesso de prevenção secundária que está sendo imposto por uma “indústria da prevenção” que passa pelo aparato tecnológico. Temos que saber gerir a demanda que aparece na atenção primária e, nesse sentido, são temas fundamentais a escuta qualificada, a compreensão da enfermidade dentro de cada contexto pessoal, familiar e comunitário e a importância da individualização dos riscos se sobrepor aos protocolos. Serão mais de 200 palestrantes, sendo 20 de outros países. Já temos mais de 2.600 pôsteres submetidos.

7) Como você vê o papel da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde?
Bem, como presidente de uma entidade científica, acho que não há nada mais importante para o País neste momento. A Rede é agregadora e dispersora de estudos nacionais de modelos de APS no Brasil e no mundo. Nesse sentido, é de grande relevância a produção científica de pesquisadores como Luiz Augusto Facchini, Ligia Giovanella, Erno Harzheim, Eugenio Villaça Mendes, entre outros. Esses estudos devem guiar majoritariamente as políticas públicas no Brasil, que não devem ser pautadas pelo ponto de vista da classe média (incluindo os políticos) do que é saúde. Nosso desafio é mudar esse ponto de vista mercantil e não nos vender a ele em troca de poder imediato e fugaz.