Prefácio: Manual de Medicina de Família e Comunidade de McWhinney (4ª edição) – Por Gustavo Gusso

28 de novembro de 2017

Era o primeiro dia de aula da disciplina Theoretical Foundations of Family Medicine do curso de Mestrado em Medicina de Família da Universidade de Western Ontário no Canadá criado por Ian McWhinney em 1977. O professor, Tom Freeman, dividiu a turma aleatoriamente em dois grupos deixando duas pessoas de fora. A turma deveria ter lido “A Natureza das Revoluções Científicas” de Thomas Kuhn previamente, e a maioria de fato havia lido. Logo o professor passaria as instruções: um grupo deveria defender que a medicina de família é um novo paradigma e outra deveria defender que a medicina de família não é um novo paradigma, de acordo com as idéias de Kuhn, não importava o que o componente do grupo pensava sobre o assunto. Ou seja, se defendesse idéia contrária, deveria participar do exercício de organizar a argumentação que coube ao grupo. Após alguns minutos estruturando a defesa, os dois grupos debateriam e os dois alunos sobressalentes iriam fazer o julgamento. Tive a sorte de ter cursado esta disciplina com Tom Freeman que a assumiu diretamente das mãos do seu mentor. Ainda hoje reproduzo esta atividade esporadicamente, porem utilizando uma outra pergunta chave derivada de uma conferência de McWhinney: “a medicina de família é diferente?”1. Nas duas atividades o conceito de “paradigma” e “diferente” devem ser dos respectivos autores e não do senso comum.

Este debate tem sido feito de forma tácita ou explícita no meio acadêmico e também por gestores motivados a conduzir as reformas em sistemas de saúde. O Manual de Medicina de Família e Comunidade de McWhinney tem a vantagem de conduzir esta discussão com os “pés no chão”. Ian McWhinney foi um médico de família e filósofo que nos deixou em 2012. Nasceu na Inglaterra e era filho de um médico geral. Migrou para o Canadá ainda jovem médico mas já com livros publicados e com a missão de implementar o primeiro departamento de medicina de família neste país. Esta era uma prática consagrada na Inglaterra mas no Canadá necessitava de uma base epistemológica consistente para vencer as resistências. Este livro é resultado deste esforço que McWhinney realizou e que acabou servindo de fundamento teórico para inúmeros países transformando McWhinney na principal referência desta área.

O enorme diferencial reconhecido pelos médicos de família e clínicos gerais do mundo todo é que este Manual tem uma base conceitual sólida que permite ao profissional navegar por aspectos profundos da prática da medicina geral, porém sempre com uma conexão com a realidade do paciente, com o tempo de consulta, com o prontuário eletrônico, com a classificação de atenção primária dentre outras ferramentas. É um livro que oferece um caminho para o médico geral se achar na confusão que se tornou muitos serviços e sistemas de saúde. Não promove o distanciamento do médico com a medicina ou com o paciente como tantos textos puramente filosóficos acabam fazendo involuntariamente. Ao contrário, consegue ir fundo, refletir sobre o que há de mais complexo na medicina, sobre os equívocos que se prega a respeito do generalista e ao mesmo tempo transpirar otimismo. O leitor termina o livro sabendo onde está e acima de tudo onde quer chegar. O motivo é que McWhinney estudava as bases filosóficas da medicina geral mas atendeu pacientes como médico de família e paliativista até poucos anos antes de morrer. Este é outro legado que deixa a acadêmicos e profissionais em geral: os pacientes ensinam, diária e profundamente.

Esta nova edição é a primeira em que Ian McWhinney não está como autor e sim faz parte do nome do livro para diferenciar de outros manuais de medicina de família. É uma justa homenagem àquele que dedicou sua vida aos pacientes e ao fortalecimento da medicina de família como disciplina acadêmica.

1.     McWhinney IR. William Pickles Lecture 1996. The importance of being different. Br J Gen Pract. 1996 July; 46(408): 433–436.

 

Gustavo Gusso

Médico de família e comunidade

Professor de Clinica Geral e Propedêutica da Universidade de São Paulo

Diretor do Departamento de Publicação da SBMFC