Como está sendo conduzida a questão do surto de dengue, zika e chikungunya no Rio Grande do Sul?

11 de abril de 2016

 Íntegra da entrevista com o professor adjunto do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da UFRGS, coordenador do Programa de Residência Médica em MFC do Hospital de Clínicas de Porto Alegre/UFRGS e vice-coordenador do TelessaúdeRS/UFRGS, Marcelo Rodrigues Gonçalves.

Como está sendo conduzida a questão do surto de dengue, zika e chikungunya no Rio Grande do Sul?

A Secretaria do Estado do Rio Grande do Sul, em parceria com o TelessaúdeRS/UFRGS e outros colaboradores, desenvolveu a campanha RS Contra AEDES, que conta com número de telefone 0800 (0800 644 3308), um site (www.rscontraaedes.ufrgs.br), um curso de educação a distância e um aplicativo disponível para Android e iOS, todos disponíveis e abertos para a população em geral. A campanha recebe denúncias e diariamente encaminha para todos os municípios do estado do Rio Grande do Sul; também cria e divulga material técnico, embasado nas últimas evidências científicas, para apoiar e orientar os profissionais da saúde, tais como guia médico para profissionais da atenção primária, planejado pensando nas peculiaridades desse atendimento; e disponibiliza material específico para os agentes comunitários de saúde, com orientações práticas e estruturadas para avaliação do território e das residências com enfoque nos cuidados em relação ao mosquito Aedes aegypti e as doenças por ele transmitidas. As características específicas do estado do Rio Grande do Sul, como sazonalidade e ausência de circulação conhecida de zika vírus, entre outras, justificam uma atenção individualizada sob esses aspectos, quando comparado com outras regiões do Brasil.

Quais ferramentas o médico de família e comunidade tem para o diagnóstico e tratamento dessas doenças?

O médico de família apresenta como instrumentos poderosos a utilização dos princípios da atenção primária à saúde, definidos pela prof. Barbara Starfield como sendo o acesso de primeiro contato, longitudinalidade, integralidade e coordenação do cuidado, além dos atributos derivados orientação comunitária e familiar e competência cultural. Além disso, ter claro os princípios da especialidade, descritos pelo prof. Ian McWhinney (solucionar problemas indiferenciados, ter competências preventivas, terapêuticas e de gestão de recursos), auxiliará inequivocamente o médico da atenção primária a cuidar da sua população, tanto nos casos de doenças agudas quanto nas doenças crônicas. Logicamente, esses conhecimentos deverão estar aliados a uma infraestrutura adequada, uma formação clínica sólida e possibilidade de uma população adscrita (ou lista de pacientes) compatível com o tamanho da equipe de saúde, além, é claro, de uma rede de atenção à saúde minimamente estruturada. Inovações tecnológica são muito bem-vindas nesse arsenal para o médico de família e comunidade, como o suporte clínico fornecido pelo TelessaúdeRS através do 0800 644 6543, para médicos e enfermeiros de todo o Brasil, disponibilização de app para smartphone, telediagnóstico e diversas atividades de tele-educação.

Como os médicos de família e comunidade e as equipes da ESF podem colaborar para barrar o aumento de casos?

        Exercendo de forma consciente os atributos da APS. E como se faz isso: 1) garantia de acesso: porta aberta ao longo do dia para as pessoas esclarecerem suas dúvidas e avaliarem seus sintomas de forma precoce; 2) garantia de atendimento longitudinal: reavaliar sempre que necessário, manter vínculos estreitos dos profissionais com os pacientes e utilizar a demora permitida, como dizia o prof. Kurt Kloetzel; 3) integralidade sempre: todo problema é de responsabilidade das equipes, mesmo que o cuidado precise ser acompanhado por outros serviços conjuntamente; 4) manutenção da coordenação do cuidado: não ‘encaminhe’, acompanhe de forma conjunta com os outros especialistas, pois o responsável pela ‘regência da orquestra’ é a equipe de APS; 5) olhar amplo para a família e comunidade, principalmente em períodos de epidemias com um forte componente ambiental e social; 6) comunicação de forma clara e adequada com as pessoas que são cuidadas, pois o papel educador das equipes de saúde da família pode ter um impacto enorme!

Além disso, a presença constante na comunidade, atuação sistemática do agente comunitário de saúde nas revisões domiciliares de focos e possíveis criadouros do mosquito, atividades em salas de espera, notificação de todos os casos suspeitos à Vigilância Epidemiológica, coordenação do cuidado junto à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e emergências hospitalares, tudo isso são tarefas que devem ser exercidas pelo médico de família e comunidade e a equipe de SF.

Há um protocolo de atendimento aos pacientes com sintomas dessas doenças? Como ele funciona?

Sim, desenvolvido em conjunto entre Secretaria Estadual de Saúde e TelessaúdeRS/UFRGS.
Arquivo anexo  www.ufrgs.br/rscontraaedes/materiais/protocolo_manual_aedes_medicos_20160128_ver009_link_lft.pdf

Como o município está trabalhando para conscientizar a população?

Como eu disse anteriormente, o trabalho tem sido feito em conjunto com a Secretaria Estadual de Saúde, universidade e outras entidades, através da campanha RS Contra AEDES, que conta com número de telefone 0800 e um site acessíveis à população para denúncia de focos do mosquito Aedes aegypti e orientações em relação às doenças transmitidas por ele.

A campanha traz material de apoio para os agentes comunitários de saúde e agentes de endemias trabalharem unidos, realizando visitas domiciliares e orientando direta e individualmente a população. A ideia é que se possa ter um grande exército na batalha contra o mosquito. Com o objetivo de capacitar os profissionais no combate ao mosquito, o TelessaúdeRS/UFRGS, junto com o Ministério da Saúde e Centro Estadual de Vigilância em Saúde do RS, elaborou um curso de educação a distância, aberto para o público em geral. Além disso, foi desenvolvido, em parceria com a empresa Sisqualis, um aplicativo disponível para Android e iOS, classificado pelo Google como um dos quatro melhores na área. O app envia denúncias, apresenta material informativo para a população e check list para cuidados no domicílio. Um segundo aplicativo específico para os agentes comunitários também já está disponível.

O município de Porto Alegre criou uma campanha própria e trabalha em conjunto com a campanha RS Contra AEDES na investigação dos casos denunciados, assim como faz parte da Sala de Monitoramento instituída junto à Secretaria Estadual de Saúde.

Algumas regiões têm saneamento básico mais desenvolvido que outras. Isso pode influenciar a variação nacional no número de casos? Por quê?

Claro que sim, principalmente em função do abismo social, no qual mantemos posições de destaque mundial. E a falta de saneamento básico em si acaba funcionando como um proxy, um marcador para todas as outras deficiências de uma região, desde coleta regular de lixo, escolas e serviços de saúde até o próprio exercício da cidadania.

Além disso, no caso específico das doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, o saneamento básico apresenta importância fundamental. O mosquito apresenta a característica comportamental de viver junto com os seres humanos, tendo preferência por criadouros artificiais para oviposição e sangue humano para repasto. Ou seja, ele se reproduz melhor em locais de grandes aglomerações populacionais, casas próximas, principalmente se houver lixo ao ar livre, possibilitando o acúmulo de água. Então, nas regiões de aglomerações sem água encanada, em que a população necessite guardar água em tonéis, ou sem coleta de lixo sistemática, o mosquito tem um ambiente propício para proliferação.

Qual o papel da população na prevenção das doenças?

O papel da população é essencial não só nessas situações de combate ao mosquito Aedes aegypti, mas também na cobrança permanente de que o poder público, gestores e serviços de saúde forneçam as condições propícias para promoção, prevenção, tratamento, cura (quando possível), acompanhamento e reabilitação dos principais problemas de saúde de suas regiões. Entretanto, especificamente no caso da dengue, chikungunya e zika vírus, a população tem de adotar medidas sistemáticas de cuidados individuais, como uso de roupas longas, repelentes quando necessário e cuidados domiciliares como faxinas semanais, verificação dos possíveis criadouros de mosquitos e denúncias aos órgãos de vigilância de seus municípios.

O Governo de SP anunciou que o Instituto Butantan deve registrar a vacina até 2018. Como cuidar do problema até lá?

A implementação de uma vacina para essas doenças não pode tirar o foco do controle vetorial, que deve ser feito hoje e sempre. Mesmo que a erradicação seja praticamente impossível, pelas adaptações que os mosquitos apresentam ao longo das décadas, manter os índices de infestação em níveis aceitáveis é uma tarefa cotidiana e permanente de todos nós, pois o impacto das epidemias de dengue e outras doenças na vida das pessoas e nos sistemas de saúde é imenso e de alto custo, tanto emocional quanto econômico. Por isso, limpeza e erradicação de criadouros sempre!

Muitos profissionais têm opinado sobre a preocupação em relação ao aumento do número de casos de microcefalia. O Brasil, a infraestrutura e até a capacitação dos profissionais estão preparados para o aumento dos casos de microcefalia? O que precisa ser feito?

A questão dos casos de microcefalia tem dois aspectos importantes. O primeiro deles é o fato das subnotificações, que nos mantinha com número de casos inferiores aos dos EUA e outros países que têm o registro sistematizado desse agravo. No momento em que se suspeitou da associação com o zika vírus, muitos desses casos subnotificados vieram à tona. O segundo aspecto é o aumento específico pelos casos de zika vírus, fenômeno que vem se comprovando à medida que novos estudos têm surgido, por relatos de casos com demonstração de lesões neurológicas dos bebês. Estudos com delineamentos mais robustos, como casos-controles e coortes, estão em andamento no País e devem trazer mais respostas em relação a essa associação.

Ao que me parece, o Brasil vem buscando dar uma resposta rápida ao problema, com uma grande mobilização de pesquisadores e parcerias com universidades nacionais e do exterior. Entretanto, o subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS), que faz com que haja desabastecimento de medicamentos básicos e filas de espera com mais de um ano para determinadas especialidades médicas no País, somado à crise econômica e política pela qual estamos passando no momento, tornam o atendimento dessas crianças um desafio a mais, pois há necessidade de estimulação neuropsicomotora precoce, além do suporte às famílias, tanto econômico quanto psicológico. Na atenção primária, especificamente, o médico de família e comunidade precisa manter-se qualificado e atualizado no que se refere aos cuidados de pré-natal e anticoncepção, assim como ter atenção especial ao desenvolvimento neuropsicomotor das crianças e na coordenação dos cuidados das crianças que necessitem atendimento por equipe multidisciplinar e apoio às demandas da família.

Outro aspecto que tem sido discutido em diversos grupos no País, frente à gravidade dos quadros de microcefalia e lesões neurológicas advindas da chamada síndrome congênita do zika vírus, é a legalização do aborto para essas situações como um direito para as famílias. Enfim, dilemas e encruzilhadas que ciência e sociedade terão de encarar, mais dia, menos dia.

*Marcelo Rodrigues Gonçalves – Graduação em medicina pela Universidade Federal de Pelotas (2000), residência médica em medicina de família e comunidade (MFC) pelo Serviço de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição (Porto Alegre/RS, 2001/2002); mestrado e doutorado em epidemiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atuou na Estratégia Saúde da Família dos municípios de Marau/RS, Florianópolis/SC e Porto Alegre. Foi professor na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Atualmente, é professor adjunto do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da UFRGS, coordenador do Programa de Residência Médica em MFC do Hospital de Clínicas de Porto Alegre/UFRGS e vice-coordenador do TelessaúdeRS/UFRGS.